É no topo do morro da igrejinha de Areias que Goiás está, desta vez, em festa.
Os cânticos intensos dos fiéis propagam-se pelo vale circundante. Pairam sobre a mancha uniforme de telha portuguesa que os anos embelezaram.
A honra da celebração vai para Bárbara, a santa protectora dos raios, dos trovões e também dos artilheiros. À laia de provocação, o fogueteiro de serviço solta canas para o céu como se disso dependesse a sua vida.
Os estrondos fazem ricochete nos morros vizinhos de São Francisco, Canta Galo e das Lages. E, a maior distância, na imponente Serra Dourada. Espantam alguns tucanos que esvoaçam para a segurança do cerrado.
Incontornável e contundente, o anúncio alerta os crentes atrasados que correm, ofegantes, Rua Passo da Pátria e escadinhas da igreja acima. Não é de bom tom perder a bênção da cruz e a procissão há muito que chegou à derradeira paragem.
O mesmo que aconteceu a Goiás Velho como é também chamada, de quando em quando, a povoação.

Crepúsculo toma conta do casario secular da povoação, como visto da Igreja de Santa Bárbara
Goiás Velho: do Arraial de Sant’Anna a Capital Estadual
Esta cidade goiana de vinte e seis mil habitantes teve origem em 1732.
Cerca de cinquenta anos depois do sucesso que tiveram em Minas Gerais, os bandeirantes que se aventuraram para o interior do Brasil em busca de metais preciosos e escravos, acharam ouro na região de Goiás.
Achado não será o melhor termo. Fazendo fé no que ficou para a história, ter-se-á tratado mais de um acto de ilusionismo.
Em 1682, uma bandeira liderada pelo velho Paulista Bartolomeu Bueno da Silva chegou ao território dos índios Goyaz. Para seu gáudio, os indígenas usavam artefactos de ouro.
Pouco vocacionado para a diplomacia mas perito em crueldade e trapaça, o anhanguera (velho diabo) – como a nação Goiá o haveria entretanto de alcunhar tratou de intimidar os nativos. Incendiou alguma cachaça sobre um prato.
Consciente de que os goiá pensavam ser água, ameaçou-os de que faria o mesmo com todos os rios das redondezas se os índios não lhe revelassem as suas minas de ouro. Três anos mais tarde, apesar de dado como morto, o velho diabo regressou triunfante a São Paulo.
Com ele, viajavam os sobreviventes, ouro e índios escravos de Goiás.
Em 1722, o seu filho homónimo, que sobrevivera à primeira investida, organizou nova bandeira e lançou o arraial de Sant’Anna.
Este arraial marcou, em 1732, o estabelecimento da vila com o mesmo nome, rebaptizada como Vila Boa de Goiaz numa homenagem sarcástica aos habitantes nativos da região, extintos pelos invasores ainda antes do ouro, que só durou até ao fim do século XVIII.
Todas as cidades têm uma história. Goiás parece ser a sua.
Até o epíteto “velho” ajuda a ilustrar o fenómeno. Isto, apesar de parte da população o achar mais depreciativo que necessário (para a distinguir do estado homónimo de que faz parte. Pouco ou nada mudou desde que se tornou na capital da recém-criada Capitania de Goiás e atingiu o apogeu.
Para a preservação da sua arquitectura peculiar foi decisiva a transferência da capital do estado para Goiânia, em 1937, uma despromoção que a deixou perdida no tempo.

Morador percorre um recanto típico da cidade sobre um burro.
O Casario Colonial que é Património Mundial
Como descreve a UNESCO, que concedeu a Goiás o título de património mundial, em Dezembro de 2001, “ … o seu desenho urbano é um exemplo notável do desenvolvimento orgânico de uma cidade mineira, adaptada às condições da área (…) de uma cidade europeia admiravelmente adaptada às condicionantes climáticas, geográficas e culturais do centro da América do Sul”.
De qualquer um dos seus pontos panorâmicos, com destaque para o campanário da igreja do Rosário ou do morro da igreja de Areias se observam tais atributos.
O casario que sobressai do verde da vegetação tropical é uniforme. Erguidas em adobe, taipa e pau-a-pique, as casas são quase todas térreas. As que fogem à regra têm, no máximo, dois pisos. São ainda pintadas de branco com excepção para as portas, janelas e molduras cujas cores dependem da disposição dos donos.
Já as ruas, estreitas, invariavelmente cobertas por uma calçada irregular feita de enormes pedras cinzentas, causam entorses frequentes. Aos poucos, arruinam também os carros dos condutores mais destemidos.

Mãe e dois filhos caminham sobre o calçadão muito irregular de Goiás.
Alguns edifícios públicos destoam em dimensão, com destaque para o Palácio Conde dos Arcos, o hospital e o Quartel do Vinte, de onde partiram soldados do Vigésimo Batalhão de Infantaria para a Guerra do Paraguai. A espaços, surgem ainda casarões imponentes com brasões senhoriais.
São sete as igrejas barrocas que abençoam a cidade. Delas se destacam a da Boa Morte que é também o museu repleto de arte sacra do escultor barroco goiano José Joaquim da Veiga Valle.
O passado de Goiás, Por todo o lado
Contornamos uma peladinha aguerrida a ter lugar no relvado da Praça Brasil Caiado. Junto ao seu enorme Chafariz de Cauda, deparamo-nos com um adolescente que brinca com um cachorro. Entre festas ao “Chacal”, conversa puxa conversa, Sebastião acaba por nos informar: “Eu sou tetraneto do Bartolomeu Bueno (filho), o fundador da Vila Boa. Vivi toda a vida aqui e a minha família também. Nunca saímos de cá.”

O tetraneto do fundador de Goiás Velho Bartolomeu Silva e o seu cachorro.
Mais abaixo, é Zé Pires – com, no mínimo, o triplo da idade de Sebastião – que nos aborda: “Tão fazendo matéria é? Essa cidade ‘tá cheia de estórias mesmo! (…) Tem muita gente que ainda tenta a sua sorte com o ouro, por esse cerrado fora. Às vezes aparece até aí no Rio Vermelho, só que é quase sempre só um niquinho sem valor! Não dá p’ra levar p’rá Fundição”. E ata o seu cavalo a uma árvore para melhor puxar pela memória.
A História Bem Viva de Goiás
Quando não são os testemunhos materiais, a própria população remete para a era mineira de Goiás.
Sebastião é descendente dos Paulistas; Zé Pires, provavelmente dos Emboadas, os imigrantes que vieram de Portugal atraídos pelo ouro de Minas Gerais e se deslocaram para o centro do Brasil.
São ambos brancos. Mas a maior parte dos habitantes da cidade é negra ou mulata, com sangue dos escravos africanos recrutados para trabalhar na mineração.
Vive e convive nas mesmas casas humildes construídas pelos seus antepassados com a ilusão da riqueza, uma ilusão que, em tantos casos, o fim precipitado do ouro e os preços altíssimos dos produtos trazidos de longe, transformou em pesadelo.

Morador percorre um recanto típico da cidade sobre um burro.
Para muitos vilaboenses, a situação ainda não melhorou, como o Brasil, em geral. A imigração do estado de Goiás para Portugal – onde tantos têm ascendentes familiares que desconhecem – e outros destinos europeus e do mundo acentua-se. Goiás contribui com os seus números. E a história reverte-se.
Outros habitantes da Vila Boa lá se vão safando com as artes em que se destacam.
Em frente à Rádio FM Vilaboa, ensaia, compenetrado, o Trio Raio de Sol. Compõem-no por Elsimar no violão, António Robertinho na viola e Magela no acordeão. Lá dentro, no pequeno estúdio, actua já o trio Nascente, de José Rito, Renan e Juan Mineiro.
A vida faz-se destas oportunidades. Mesmo que a rádio não pague a actuação, quem sabe se a promoção não os leva a algum festival de sertanejo.

Magela, o acordeonista do grupo Trio Raio de Sol.
Goiás Velho: Sem Pressas nem Complexos
Goiás está longe de ser turística. É verdade que durante a Semana Santa e, principalmente a Procissão do Fogaréu – única no Brasil – a cidade fica à pinha para assistir à reencenação da perseguição dos farricocos a Cristo.
E o mesmo acontece com a chegada do FICA–Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, uma das maiores mostras temáticas do mundo. Além destas ocasiões e celebrações, só a passagem de ano atrai um número significativo de visitantes, provenientes das cidades vizinhas, Brasília, Goiânia, Anápolis, Pirenópolis.
Ao contrário das “irmãs” de Minas Gerais, Tiradentes, Diamantina e Ouro Preto que são intensivamente promovidas e recebem milhares de visitantes brasileiros e estrangeiros interessados, Goiás continua a pagar o preço da interioridade. Permanece na sombra do seu título de Património Mundial.
Enquanto não se faz justiça, Goiás trata da herança que recebeu. E desfruta da sua vida genuína e sedativa.
As lojinhas e outros pequenos negócios funcionam nas casas seculares da cidade, identificados por nomes e logótipos pintados, nas paredes, em cores garridas.

Lilian e Cristiane, empregadas numa loja colorida de tecidos e roupa, instalada numa casa colonial de Goiás Velho.
Abrem bem cedo para sustentar a pequena economia local: as lanchonetes que vendem os empadões típicos da cidade – nem mais nem menos que empadas gigantes com recheio rico – salgadinhos, cocos gelados e cremes de uma miríade de frutos; as lojas de tecidos, roupa e de artefactos religiosos; farmácias à moda antiga; um ou outro estabelecimento mais moderno que fornece os indispensáveis celulares, ou aluga o filminho da moda.
Dinamizam também a cidade alguns empresários de ocasião: o vendedor de picolé ou do bilhete da sorte que, circulam, sem rumo, sobre o empedrado irregular das ruas.
Com o fim da tarde, os negócios fecham e os moradores recolhem às casas. Ou reúnem-se à entrada da igreja, a aguardar o início da missa e, à conversa, nas esquinas.
Assim que o sol se põe, os velhos lampiões de luz dourada acendem-se numa sequência desconexa. Goiás passa para o seu modo nocturno e instala-se uma paz só quebrada pelos foguetes ou, caso seja tempo de comemoração, pelos cânticos.

Duas crianças treinam capoeira numa rua da cidade dourada pela luz.
No dia seguinte, os vilaboenses despertam com o alvorecer para o ritmo tranquilo de trabalho que o clima do Planalto Central ajuda a marcar.
Situada sobre os 15º de latitude, faz calor todo o ano em Goiás. No Inverno – de Maio a Setembro – não chove, o ar é límpido e o céu permanece azulão, polvilhado de pequenas nuvens brancas. “’Tá fazendo um frio de noite!” queixam-se os locais todos os dias de Julho e Agosto, apesar de a temperatura quase nunca baixar dos 15 graus.
O Verão, que dura os restantes meses, acolhe a época das chuvas, quando está quase sempre nublado e chove com frequência e intensidade, às vezes, surpreendentes.

A Catedral, bem acima do casario secular da Vila Boa.
O Cerrado da Serra Dourada de Goiás
Mas não é só o clima bipolar de Goiás que se faz sentir e fascina. A natureza sobressai na cidade, nas fazendas próximas e, para lá dos arredores, na longínqua Serra Dourada.
Um passeio demorado revela-nos a beleza pitoresca da floresta, do cerrado e da roça: as plantações de cana de açúcar sem fim. A boiada a pastar na vastidão das planícies gramadas, algumas infestadas de cupinzeiros. Os ipês brancos e rosados na proximidade de chácaras e sítios centenários. E os “oásis” de buritis a assinalar os rios e lençóis de água subterrâneos.
Orley é um dos guias mais activos de Goiás. Conhece a região como poucos, incluindo os recantos improváveis da Serra Dourada. Orley habituou-se a conduzir o seu buggy amarelo pelo labirinto cinzento da Cidade das Pedras, a caminho da Pedra Balão.
Gosta de terminar a tarde no Mirante Urubu-Rei, onde o ocaso torna tão óbvia a razão de ser do nome da serra – e revela o Vale da Areia, escondido no meio do planalto.
“São estas areias e pedras que a Goiandira usa nas suas pinturas.” conta enquanto recolhe amostras do solo. (…) “Ela vem de vez em quando à serra procurá-las, nos mesmos locais onde os bandeirantes prospectavam o ouro.” (…) “Hoje, ela guarda uma colecção de mais de quinhentos tons de areia e pigmentos da Serra Dourada.”
Goiandira Aires do Couto é uma artista plástica conterrânea, prima da escritora mais famosa de Goiás, Cora Coralina.
Com 92 anos e muita vitalidade, Goiandira continua a retratar os casarões e paisagens vilaboenses. Usa uma técnica exclusiva que criou, patenteou no Rio de Janeiro e que lhe granjeou reconhecimento internacional: risca o desenho na tela, aplica cola e salpica areia nos dedos.
Os seus quadros estão na sede da ONU e em museus. Integram colecções de grandes personalidades brasileiras e estrangeiras, de dezenas de países. Parte dessas personalidades, como tantos outros possíveis visitantes de Goiás, desconhecem os lugares por ela retratados. O seu reconhecimento adiado é algo que não perturba demasiado a cidade.
Como o tempo se esqueceu de Goiás, a Goiás já não custa esperar.