A localização aplanada de Egilsstadir, à margem de um de tantos talvegues invadido por aves migratórias da Islândia, pouco deixa antever do trecho que se segue.
Após o entroncamento, a estrada trepa a montanha, primeiro coberta de vegetação ressequida que lhe empresta tons ocre e acastanhados mas que, com a altitude, logo cede ao branco.
A neve aumenta a olhos vistos. No cume da encosta, a via enfia-se entre paredes altas de gelo. Caem amostras de avalanches de ambos os lados que soterram mais e mais o asfalto já sufocado.
É a tracção às 4 rodas que nos salva de um atascanço de outra forma garantido.
A Descida Crepuscular para Seydisfjordur
Vencido o cume pela frente, tem início a descida para as profundezas do fiorde.
São quase dez, como se convencionou dizer, da noite.
O sol teima em resistir nesta Islândia, apesar do cenário frígido, já oficialmente primaveril. A luz do ocaso subárctico tinge de magenta os picos das montanhas por diante mas falha a ladeira sinuosa por que descemos em direcção ao sopé e ao mar.
![costa, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/costa-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x681.jpg)
Vista de Seydisfjordur abrigado num de muitos fiordes da costa nordeste da Islândia
Passamos uma queda d’água regelada. Alguns meandros de asfalto depois, vislumbramos finalmente o casario difuso. Seydisfjordur, a cidade islandesa mais distante de Reiquejavique, não tarda.
David Kristinsson encontra-nos no parque de estacionamento contíguo ao seu Hotel Aldan. Acertamos agulhas quanto à visita e percebemos que esperava que conhecêssemos de antemão o encanto e a fama do lugar.
Não era ainda o caso.
A noite cai de vez. Por indicação do anfitrião, alojamo-nos no edifício do velho banco também por ele recuperado. Ali instalados, recarregamos as baterias do equipamento de trabalho e, assim que possível, as nossas, quase a zero depois da longa viagem desde Husavik.
Novo Dia Por Entre o Casario Norwegian Wood de Seydisfjordur
A manhã e o pequeno-almoço resgatam-nos a lucidez. David aproveita. Mostra-nos os recantos pitorescos de norwegian wood do Hotel Aldan, provavelmente trazido em forma de kit da Noruega, em tempos uma mercearia, depois um vídeoclube.
![dono, hotel Aldan, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/dono-hotel-Aldan-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x681.jpg)
David Kristinsson ao balcão do seu Hotel Aldan.
Philippe Clause, um amigo gaulês dos arredores de Paris que habita num estúdio do outro lado da rua, faz-nos companhia.
Os pescadores noruegueses retomaram uma colonização prévia que se presume anterior ao século VIII.
Atraídos pela abundância de arenque, ergueram os primeiros edifícios de madeira e estabeleceram, ali, um entreposto piscatório, o mesmo que viria a fazer o baleeiro norte-americano Thomas Welcome Roys, ainda no século XIX.
![casario, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/casario-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x680.jpg)
Casario da povoação no sopé das montanhas que delimitam o fiorde.
A 2ª Guerra Mundial e a Aniquilação da Frota Pesqueira Local
Quando a 2ª Guerra Mundial eclodiu, a povoação tinha-se já desenvolvido-se significativamente. Acolhia um cabo teleférico submarino precursor que ligava a Islândia à Europa continental e a estação de alta voltagem inaugural do país.
Os estrategas britânicos e americanos detectaram as vantagens da sua localização e decretaram que lá fosse instalado uma base militar e uma pista de aterragem. Hoje, essa pista está desactivada.
![igreja, povoacao, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/igreja-povoacao-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x680.jpg)
Igreja de Seydisfjordur, onde se realizam ensaios do canto coral da povoação.
David pega na história mais à frente: “até há uns tempos, havia uma boa frota pesqueira a zarpar daqui e uma grande fábrica de processamento de peixe. À sua maneira, a municipalidade evoluiu e tornou-se na mais próspera do leste da Islândia.
Até que os armadores poderosos de Reiquejavique compraram quase todos os barcos. Seydisfjordur deixou de ter empregos para oferecer e ficou ao abandono.”
![doca, barcos, pesca, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/doca-barcos-pesca-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x681.jpg)
A doca de pesca de Seydisfjordur, em tempos repleta de barcos de pesca, hoje, quase vazia.
Seydisfjordur e Dieter Roth: uma Passagem Criativa da Pesca para a Arte
Salvou-a o advento do turismo, por meios pouco convencionais, diga-se de passagem. Os primeiros curiosos apreciaram a sua beleza retirada e instalaram-se. Seguiu-se uma comunidade de boémios e criadores atraídos pelo acolhimento dos pioneiros e pela sensação de liberdade.
Alguns chegaram de outras partes da Europa.
O mais famoso, o artista suíço-alemão Dieter Roth, viu em Seydisfjordur um lugar mágico. Na última década da sua vida, estabeleceu na povoação uma de várias residências sazonais.
![montra hotel Aldan, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/montra-hotel-Aldan-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x681.jpg)
Montra histórica do Hotel Aldan.
Roth faleceu em 1998. Nesse mesmo ano, um grupo de admiradores do seu trabalho, da arte em geral e da povoação, fundaram na vivenda em que habitava Skaftfell, um Centro para Arte Visual.
A Devoção e Dedicação de David Kristinsson por Seydisfjordur
É para lá que andamos com David, entre o braço de mar que invade o fiorde e o casario colorido no sopé da encosta. Pelo caminho, o cicerone conta-nos um pouco da sua vida: como tinha nascido em Akureyri, a capital do norte.
O período em que se mudou para Copenhaga com a namorada, onde, ao fim de três anos, aprendeu bom dinamarquês, apesar de uma professora de infância lhe repetir que nunca o conseguiria.
Fala-nos ainda do regresso a Reiquejavique onde também vivera mas a que nunca se habituara.
E da sua mudança, em 2011, para Seydisfjordur, de armas e bagagens, com ideias e algum dinheiro para investir na comunidade, como nos confessa, sem qualquer obsessão pelo lucro.
![interior, imobiliario, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/interior-imobiliario-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x681.jpg)
Interior de um antigo banco da povoação, agora convertido em casa de habitação em estilo “norwegian wood”.
Chegamos a Skaftafell.
Skaftafell e Dieter Roth: Lugar à Arte e Criatividade
David apresenta-nos a Tinna Gudmundsdottir que, por sua vez, nos apresenta o centro com indisfarçável orgulho. No terceiro andar, mostra-nos os aposentos da residência atribuídos aos estudantes de arte e outros frequentadores de passagem.
![centro artes, Skaftafell, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/centro-artes-Skaftafell-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x681.jpg)
Tinna Gudmundsdottir no centro de artes Skaftafell.
No segundo, apreciamos uma série de esboços expostos nas paredes e examinamos com estupefacção química a montra de fast-food apodrecida com que Dieter Roth, recorrendo a incontáveis bactérias, voltou a expressar a sua inquietude social e criatividade crítica.
Este tipo de obras biodegradáveis eram comuns no artista que, por esse motivo, ficou igualmente conhecido como Dieter Roth.
Um experimentalista nato com energia e dedicação inesgotáveis, Roth produziu inúmeros cadernos de artistas, obras impressas e esculturas. “Ele recorria a esta mesa quando tinha mais alguma ideia de rompante. Criava esboços e acumulava-os por aqui até, mais tarde, os associar em livros ou outros formatos.
Nós agora convidamos quem por cá passa a deixar também as suas marcas.” diz-nos Tinna, para logo nos levar a uma estante repleta de outros livros do antigo proprietário e nos guiar página atrás de página.
O Desalinhamento Político de Seydisfjordur
A determinada altura, a conversa muda de tom, como o brilho nos olhos azuis da filha de Gudmund que protesta contra a situação a que chegou a Islândia, afiança-nos devido aos seus governos de direita, sempre demasiado preocupados com retornos financeiros.
“Lucro, lucro e mais lucro. É tudo em que pensam. Até o supermercado novo que se instalou ali em cima, faz questão de nos explorar com preços híperinflacionados. Aqui em Seydisfjordur, quase todos o evitamos.
![paisagem, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/paisagem-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x681.jpg)
Margem ocupada pelo casario antigo de Seydisfjordur.
Preferimos fazer os 60 km por cima da montanha e fazermos compras em Egilsstadir do que sermos roubados.” O debate político-económico prolonga-se. Tinna fica intrigada e, por momentos, desarmada quando lhe contamos que em Portugal há uma forte noção de que o último governo de esquerda levou o país à bancarrota.
O tempo que tínhamos para a cidade esgota-se.
Às Voltas pela Beira-Mar de Seydisfjordur
Deixamos Skaftafell por volta da hora de almoço. David escolta-nos até meio do caminho para o Hotel Aldan. Quando chegamos a uma estação de serviço, comunica-nos a hora da separação: “bom, eu fico por aqui. Às sextas, encontramo-nos todos naquele restaurante. A comida é muito má, o convívio compensa.”
Por conta própria, decidimos explorar um pouco mais da povoação e do fiorde. Em quase duas horas, só encontramos oito ou nove almas das quase 700 que é suposto a habitarem.
![igreja, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/igreja-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-680x1024.jpg)
Igreja de Seydisfjordur, onde se realizam ensaios do canto coral da povoação.
O posto turístico funciona mas está vazio, como a doca recolhida em que vemos apenas alguns barcos alinhados, os poucos que sobraram da razia comercial perpetrada pelas empresas piscatórias da capital.
E os Tricots Artísticos de Philippe Clause
Antes de partirmos, ainda passamos pela casa de Philippe que, no conforto do estúdio, se mostra pouco preocupado com aquele aparente marasmo civilizacional.
![estudio echarpes, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/estudio-echarpes-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x681.jpg)
Philippe Clause, um dos expatriados de Seydisfjordur no estúdio em que produz cachecóis e echarpes elegantes.
A sua arte é o tricot e, numa mesa repleta de novelos de lã coloridos, o francês expatriado dedica-se a finalizar novos cachecóis, xailes e echarpes elegantes que promove numa montra improvisada nas paredes e, online, onde é ele próprio o modelo.
David dizia-nos que interessavam mais ao seu negócio hoteleiro e à cidade os visitantes que lá queriam passar vários dias a usufruir da tranquilidade e da dinâmica cultural, não tanto aqueles que davam a volta à Islândia a correr, em seis ou sete dias.
![vista do hotel Aldan, fiorde, Seydisfjordur, Islandia](https://www.got2globe.com/wp-content/uploads/2014/01/vista-do-hotel-Aldan-fiorde-Seydisfjordur-Islandia-1024x681.jpg)
Panorama enquadrado do 1º andar do hotel Aldan.
Estávamos a explorar a ilha com alguns mais que apenas. Ainda assim, pertencíamos à última classe.
Metemo-nos no carro e despedimo-nos de Seydisfjordur. Até uma próxima oportunidade.