Por mais que o quiséssemos, não temos como evitar voltarmos ao tema dos banhos.
Na tarde em que completámos a travessia do desfiladeiro Thorong La, tinha passado uma semana sem duches, ou algo que pudéssemos sequer equiparar.
No Bob Marley Hotel de Muktinath, “One Love” era “One Love”. Vimo-nos prendados com duches fluídos, de início bem quentes, que um uso simultâneo excessivo, logo amornou.
Derreados das oito horas de caminhada, em boa parte acima dos cinco mil metros de altitude, quase sempre muito inclinada, reorganizamos o equipamento e a roupa à pressa.
Livres dessa chatice, mudamo-nos para o terraço, onde estava combinado encontrarmo-nos com o resto do grupo da travessia.
Em Muktinath, os 5410m de altitude do desfiladeiro, tinham passado para 3800m.
Mesmo se incomparável com o que sofremos no High Camp, o fim da tarde trouxe um frio que a pedra em que fora erguido o hotel parecia acentuar. Assim que o sol desapareceu para trás das montanhas, o terraço tornou-se desconfortável.
Já há muito habituados ao “jogo das cadeiras” das guest e tea houses dos Annapurnas, apressamo-nos a passar para a sala de refeições e a conquistarmos o entorno da salamandra. Lá nos reunimos a devorar os jantares que o metabolismo, aceleradíssimo de tanta caminhada e esforço, nos obrigou a antecipar.
Entregamo-nos a uma cavaqueira tão amena como a sala. Don, o nosso carregador, joga snooker com o pseudo-guia da Sara e do Manel. Quando terminam, o carregador irrompe convívio adentro, embriagado, como acontecia, noite após noite.
Temos que o convencer que não poderia regressar a Manang (a pelo menos um dia e meio de caminhada), àquela hora.
Que tinha que ir dormir e que sairia, recuperado, na madrugada seguinte. Apesar do seu alcoolismo e da estatura atarracada, pelo que tínhamos visto na ida, achávamos que, desde que não apanhasse tempo demasiado tempestuoso, Don voltaria a casa apenas num dia.
Por volta das 21h, alimentados e reconfortados, sentimos os corpos a darem de si. Fomo-nos todos deitar. Pensávamos que, após aqueles três dias desgastantes, dormiríamos até ao meio-dia. Ao invés, às 7h30 já estávamos a despertar, rejuvenescidos e uma vez mais esfomeados.
Devoramos o pequeno-almoço preferido do menu, entre as 8h30 e as 9h.
Meia-hora depois, espreitamos o principal santuário local, Mukti Kshetra (traduzível como “lugar da libertação”), vixnuíta e sagrado para os hindus mas que os budistas se habituaram a venerar.
Cumprida a curta peregrinação encosta acima, retornamos à rua ressequida dos hotéis. É entre bancas pejadas de roupa e de artesanato que inauguramos o trajecto para terras mais baixas.
Com Don a caminho de Manang, voltávamos a ter as duas mochilas grandes sobre nós. A readaptação àquele sobrepeso, custou-nos, mas, com os corpos massacrados de, não tarda, vinte dias de exercício intenso, depressa se cumpriu.
A primeira grande diferença que encontrámos no caminho esteve na paisagem. Já nos tínhamos habituado à neve que cobria as encostas e os cumes desde Thorong Pedi até às vertentes mais elevadas de Thorong La.
Ali, a norte de montanhas tão imponentes como a Annapurna III (7555m) e a Tilicho (7134m), entre a época das chuvas e o Inverno, a chuva e os nevões eram raros. O solo mantinha-se áspero e até poeirento, a vegetação, amarelada do frio e da secura.
Cursos de água vindouros abririam excepções exuberantes neste cenário. Faltava-nos lá chegar.
De Muktinath a Kagbeni, Quase Sempre a Descer
Despedimo-nos de Muktinath. Umas centenas de metros depois, percebemos que, salvo se o evitássemos, a continuação do Circuito Annapurna se faria sobre asfalto.
Num instante, concordamos que, sempre possível, encontraríamos atalhos e alternativas ainda imaculadas.
Nessa demanda, chegamos a um ponto com vista desafogada. Destacavam-se, ao longe, os picos aguçados e nevados da cordilheira Jakkriojagga (6402m).
Logo abaixo, um povoado extremo estendia-se sobre uma crista árida. Mal o detectámos, cortámos para o primeiro trilho campestre que nos parecia lá levar.
A obsessão por o fazermos, garantiu-nos a genuinidade himalaia e budista com que o Circuito Annapurna nos tinha prendado, até ao zénite de Thorong La.
O trilho entranha-se num reduto de socalcos que imaginávamos, de Maio a Setembro, ensopados e preenchidos por arrozais viçosos. Naquela altura, sustinham um qualquer outro cereal de sequeiro que tardava em despontar.
Um camponês incitava duas vacas a puxarem o arado com que, entre arbustos outonais, revolvia a terra.
De Entrada na Majestosa Jarkhot
Pouco depois de o saudarmos, damos com um sinal que, malgrado a forma de “proibido”, tinha, bem visível, um “Welcome to Jarkhot”.
Jarkhot foi, assim, a povoação que se seguiu, cerca de trezentos metros mais baixa que Muktinath, mais próxima do grande rio que por ali fluía, o Gandaki.
Ao cumprirmos os derradeiros passos, um grande bando de corvos descola não sabemos de onde. Uma súbita corrente ascendente convidara as aves negras a pairarem sobre o vale e sobre nós. Quando atingimos a entrada da aldeia e da sua longilínea gompa, já os tínhamos perdido de vista.
Após o hiato hindu do também conhecido por Shree Muktinath Temple, Jarkhot marcava um regresso em pleno à esfera budista-tibetana de quase todo o Circuito Annapurna, de povoações-santuário de que se destacaram Brakka e a bem mais vasta Manang.
Voltávamos a caminhar lado a lado com paredes de oração e a atravessar as estupas que serviam de portais de bênção à entrada e à saída, reforçadas por dois khenis, um masculino, outro feminino, duo de guardiães moldados em argila e incumbidos de devorarem os maus espíritos.
Bandeiras de oração destacavam-se dos telhados lisos dos vários edifícios da gompa.
Um morador vizinho do templo, aparece no terraço do seu lar e atira uma qualquer dádiva a galinhas que vasculhavam a ruela em frente.
Vista de sul e das suas traseiras, Jarkhot tinha-nos parecido uma coisa.
Depois de termos passado para o norte e dela nos distanciarmos, vemos definir-se a sua linha de edifícios, todos com fachadas alvas, com excepção para o edifício primordial, o palácio real sobranceiro e ocre.
Aos poucos, a povoação reveste-se de uma imponência condizente com o seu passado.
Jarkhot, um Passado entre a Realeza e a Medicina Tradicional Nepalesa
No século XVII, Jharkot, antes conhecida como Dzarkot, com frequência abreviado para Dzar, engrandeceu quando os reis da dinastia Gunthang se aperceberam da sua localização privilegiada.
Cercada de terra bem mais fértil que a que existia na região de Jhong, de que se apressaram a mudar.
A partir de Jharkot, a realeza continuou a reger um domínio vasto que, hoje, abarca doze baragaon, o equivalente a aldeias e às suas terras.
Nessa era, muito graças à fertilidade e abundância de plantas, as gentes de Jharkot especializaram-se em medicina e até veterinária naturais, nas suas mais diversas formas de cura.
Essa aptidão desenvolveu-se até hoje.
Na grande gompa de Jharkot, os monges budista-tibetanos preservam uma colecção profícua de remédios naturais a que os nepaleses das redondezas recorrem quando se veem aflitos.
O número de divisões e a grandiosidade do palácio real, em geral, atestam que os reis de Gunthang se mudaram para a velha Dzar com planos de por ali se manterem.
Apreciavam as perspectivas desafogadas sobre o vale de Muktinath, sobre Jhong, Putak e Khingar.
Kagbeni, a aldeia que tínhamos estabelecido como destino do dia, permanecia escondida pela encosta que se impunha a oeste e acima de Jharkot.
A Caminho de Kagbeni
O trilho que saía da aldeia descia em direção a um tributário do rio Gandaki. Uma vez que Kagbeni se situava noutra direcção, vimo-nos forçados a retomar o asfalto.
Instantes depois, um marco de distâncias plantado à beira da estrada informa-nos que Kagbeni distava cinco quilómetros.
Mesmo com as mochilas a pressionar-nos os ombros como nunca, era coisa pouca para o que nos tínhamos habituado a percorrer.
A estrada serpenteia, apontada às montanhas descomunais e pontiagudas de Jakkriojagga. Continuámos sem ter vista para ocidente. Até que atingimos a ponta rebaixada da encosta que dava passagem à via.
Aí, desvendámos todo um novo vale, bem mais plano e verdejante que o de Jharkot, assente em terras de aluvião acumuladas, ao longo dos tempos, pelo fluxo do Gandaki.
Um leito descomunal e pedregoso do rio antecedia a povoação e os muitos minifúndios que a cercavam e alimentavam. Uma nova encosta íngreme e barrenta fechava todo o cenário.
Kagbeni, o Portal para o Reino do Alto Mustang
Para norte, ficava o domínio durante muito tempo proibido de Alto Mustang que nos inspirou planos de futuras aventuras.
Quase 12 km e quatro horas de contemplação após a partida de Muktinath, estávamos às portas de Kagbeni.