O calor aperta mas, chega a sexta-feira, Perth abstrai-se da fornaça e espairece.
É vasto o espaço de fuga em redor. Surge preenchido por uma natureza crua e resplandecente, na prática tudo aquilo de que um australiano true blue precisa para ser feliz, se lhe juntarmos, claro está, a camaradagem, a companhia da prancha de surf durante o dia e da cerveja preferida a partir do fim da tarde.
Alguns residentes rumam à linha de areal que dota a costa do Índico para norte e para sul da foz do rio Swan. Outros, afluem à vizinha Freemantle e à sua alma gémea insular, a Rottnest Island, Rotto, como preferem abreviar os visitantes mais íntimos.
Outros ainda aventuram-se às profundezas da província sem fim ansiosos por respirar os ares puros combinados do Índico e do mais longínquo oceano Antártico. Depois de quase um mês de deliciosa permanência na capital da Austrália Ocidental, juntamo-nos à evasão.
As primeiras dezenas de quilómetros do percurso dividem-se entre as ruas dos arredores e as auto-estradas de saída da metrópole. Com a distância, começam a suceder-se os primeiros refúgios veraneantes.
À velocidade permitida, sem paragens dignas de registo, no fim da mesma tarde estamos em Bunbury. A povoação não nos enche as medidas pelo que nos limitamos a lá dormir.

Uma encruzilhada verdejante nos confins do sudoeste da Austrália.
O Litoral Bravio e Surfista de Yallingup
Retomamos a Bussel Highway em direcção à Bunker Bay e ao Cabo Naturaliste.
No pino do Verão austral, grassam por ali incêndios florestais e o acesso permanece bloqueado pelas autoridades. Sem alternativas válidas, atalhamos para Yallingup.

Dona e cão numa praia nas imediações de Yallingup.
No dialecto local aborígene Noongar, Yallingup significa “Lugar do Amor”.
Não nos custa perceber porque os australianos mais abastados – incluindo, assim nos dizem, vários jogadores profissionais de críquete – se apaixonaram pelo lugar e ali têm casas de férias.

Grupo de amigos acompanha o surf no oceano Índico abaixo, nas imediações do Cape Naturaliste.
A estrada termina num parque de estacionamento minimal.
Quando saímos do carro alugado, deparamo-nos com a Smiths Beach, uma enorme baía selvagem, forrada de vegetação costeira verdejante e um areal desafogado que o Índico verde-azul invade.
Taj Burrow: um quase-Mito do Surf Mundial
O cenário é grandioso. Inspira um exército de surfistas determinados como o faz a figura lendária e residente de Taj Burrow. Taj é filho de pais americanos.
Em 1988, aos 17 anos, tornou-se no competidor mais jovem a qualificar-se para o ASP World Tour, mas adiou a sua participação para o ano seguinte – quando se voltou a qualificar – por se achar demasiado jovem para passar tanto tempo em redor do mundo.
Desde então, triunfou em diversas provas de renome e derrotou concorrentes bem mais cotados, caso do agora onze vezes campeão do mundo Kelly Slater.
Os seus discípulos chegam em campervans e carrinhas envelhecidas. Vemo-los vestirem os fatos e prepararem as pranchas para logo percorrerem o longo trilho que conduz ao mar, apressados, como se receassem que se pudesse sumir de um momento para o outro.

Surfista desce para a praia de Smiths, um litoral selvagem e sagrado para os surfistas australianos.
Observamo-los também ao longe, a vencer a primeira rebentação branca para atingirem as ondas ideais que, destemidos e por vezes inconscientes, partilham com tubarões, incluindo grandes brancos.
Gnarabup, a praia que se segue, tem um mar demasiado raso para que estes portentosos predadores se acerquem mas é desprezada pela comunidade surfista.
As suas águas mais depressa fazem correr os banhistas convencionais, desejosos de relaxarem no cenário idílico antes de se perderem nos mil e um sabores e aromas de Margaret River.
Margaret River: a Capital Vinícola da Austrália Ocidental
Mags – o diminutivo afectuoso – é a povoação vinícola e gastronómica por excelência do sudoeste da Austrália Ocidental. Em nenhuma outra zona a grande ilha se revela tão mediterrânica como ali.
Do litoral para o interior, ao longo do rio epónimo, a vegetação evolui dos arbustos de arriba das praias para bolsas de sobrais e eucaliptais que remetem para o sul português, ainda mais quando abrem espaço às famosas vinhas da região, aos pastos do gado australiano e aos seus cowboys aussies.

Manada de vacas apreensivas num prado junto a uma das muitas vinhas de Margaret River.
Cento e quarenta adegas, na sua maioria diminutas, ocupam cerca de 5500 hectares e produzem vinhos cada vez mais enormes a nível mundial. Margaret River só assegura cerca de 3% da uva australiana.
Ainda assim, 20% da produção Premium do país tem ali origem, com destaque para o Sauvignon Blanc que todos os anos ajuda a atrair um milhão de visitantes.
Deixamos Mags entregue à sua maturação enóloga e turística.
Para Sul do Cabo Leeuwin. O Domínio das Grandes Florestas de Eucaliptos Australianas
Continuamos a descer a longa Bussel Highway com passagem por Karridale e por Augusta. Fica por estes lados a porta de entrada para o Cabo Leeuwin, o ponto limiar ocidental do Sudoeste, onde os aussies crêem que colidem os oceanos Índico e Antárctico.
Prosseguimos para a região das grandes florestas australianas, um domínio místico e poderoso que leva à lágrima os ozzies mais patriotas e sentimentalistas, comovidos pelo cheiro quente da terra, rendidos à imponência dos troncos gigantescos das jarrah, marri e karri trees, as espécies de eucaliptos que ali proliferam.
Ao longo de centenas de quilómetros, esta floresta majestosa rouba-nos a visão aberta do céu e deixa-nos apreensivos. As distâncias australianas são intermináveis. Não as podemos percorrer devagar.
Só que, por aqueles lado, os wallabies e cangurus de maior porte cruzam a estrada com frequência.

Sol põe-se e define as silhuetas formadas por eucaliptos altivos, as árvores dominantes no grande sudoeste australiano.
Qualquer colisão poderia provocar danos irreparáveis de parte a parte, ainda mais grave num domínio que os ambientalistas inveterados têm como sagrado.
“We Love Music” repete, a espaços, com sotaque ozzie, a voz feminina no éter. Para compensarmos a monotonia da paisagem e das rectas sem fim, mantemos o rádio sintonizado na Triple J, uma das estações mais jovens e irreverentes da Austrália.
A determinada altura, somos prendados com uma entrevista a dois membros dos Buraka Som Sistema que, na altura, animavam um dos principais festivais de Verão australianos ao som do contagiante “Wegue Wegue” e outros temas do seu progressive kuduro.
Enquanto os quilómetros e os marsupiais por nós passam, não conseguimos deixar de rir com a discussão de Lil John, Kalaf e DJ Riot sobre as virtudes e desvirtudes musicais do sempre prepotente norte-americano Kanye West.
Quase uma hora depois, permanecemos subsumidos na floresta e a visão inesperada de várias lonas e cartazes de protesto confirma-nos a presença latente dos ambientalistas.
Até há algum tempo, as árvores da região – muitas delas seculares – alimentaram uma indústria madeireira próspera sediada em Nannup, Bridgetown, Pemberton e Northcliffe.
A pressão dos ambientalistas nunca parou de aumentar. Como resultado, o governo limitou o abate a um mínimo essencial.
À Descoberta do Majestoso Valley of the Giants
Hoje, estas pequenas povoações procuram compensar o corte no seu velho e fácil sustento com lucros de actividades ecológicas recém-geminadas.
Por fim, chegamos ao Grande Sul australiano. Ainda cercados de árvores e mais árvores, planeamos deter-nos no Valley of the Giants, ansiosos por trocarmos o carro pela mais impressionante dessas emendas ambientais.

Estrada de terra do tom usual do interior australiano conduz a uma grande enseada azul.
Passamos por Walpole. Após Nornalup, flectimos para o interior até que chegámos à área protegida que lhe dá o nome.
Exclusivas desta pequena região do Grande Sul da Austrália Ocidental, as árvores tingle tingle (Eucalyptus jacksonii) que ali abundam podem viver mais de 400 anos e crescer 60 metros enquanto os seus troncos chegam aos 16 metros de diâmetro nas bases.
Durante décadas, os locais e visitantes entusiastas da natureza percorreram o trajecto que atravessa o vale para verem o “Velho Império” vegetal que se havia instalado naquele lugar muito antes de os europeus ancorarem na grande ilha austral.
Hoje, graças ao pensamento ecológico da população e das autoridades, mais que admirar a partir do chão, podemos caminhar pelo cimo da floresta ao longo de uma estrutura com cerca de 600 metros.
O vento faz oscilar as passadeiras e agrava uma vertigem controlada mas o mar de clorofila em redor deixa-nos deslumbrados.

Um dos passadiços elevados do Valley of the Giants, uma floresta de eucaliptos gigantes anciã do sul da Austrália, situada na zona de Nornalup.
Uma Dinamarca Perdida na Austrália Ocidental
Denmark é conhecida como a vila em que aquela mesma floresta aparentemente sem fim encontra o mar e os hippies se encontram uns aos outros.
Como tantas povoações pela Austrália Ocidental fora, revela-se um refúgio de campo marcadamente residencial mas repleto de galerias e lojinhas de arte alimentadas pelos estilos de vida alternativos de muitos moradores.
Ao contrário do que toda a gente e nós próprios pudéssemos pensar, o seu nome tem pouco que ver com o país nórdico. Foi-lhe atribuído, em 1829, pelo médico naval Thomas Braidwood Wilson, o primeiro homem branco a explorar a zona e que baptizou o rio que ali corria com o apelido de um dos seus melhores amigos, o doutor Alexander Denmark.
Mais que a povoação, são as redondezas que nos atraem.
Apelam-nos, em particular, o litoral excêntrico do PN William Bay, repleto de enseadas perfeitas em que as marés cobrem e descobrem curiosas rochas arredondadas – as Elephant Rocks – e piscinas naturais com uma água tão gélida que só verdadeiros masoquistas nelas se banham.

Rochas arredondadas e com o tom de elefantes, um atributo geológico predominante do Parque Nacional William Bay.
Estamos já na costa meridional da Austrália.
Para sul no mapa, resta apenas a Antárctida e, a condizer, sopram ventos furiosos que, além de baixarem adicionalmente a temperatura do ar e do oceano, parecem querer arrancar os grandes calhaus de granito dispersos pela praia.
South Coast Highway Fora, até ao Destino Final de Albany
A leste, ao longo da South Coast Highway, sucedem-se dois tipos de beira-mar extremos e imaculados, ora rochoso e dramático, ora dominado pela vegetação costeira verdejante e embelezado por areais que mais parecem neve.

A Little Beach do PN Two Peoples, uma das praias frígidas e, só por isso, quase perfeitas da região de Albany.
Mesmo se é apenas a sexta cidade do estado, com 34.000 habitantes, Albany é a maior que visitamos desde que deixámos Busselton, onde acompanhámos uma prova maritima de natação.
Também é a colónia permanente mais antiga da Austrália Ocidental, fundada em 1826, três anos antes de Perth. Nos dias que correm, exibe visuais contrastantes.
O do velho centro histórico com os seus edifícios coloniais relativamente bem preservados junto à marginal e o da zona nova que se desenvolve a olhos vistos para o interior e que aumenta uma extensão americanizada de centros comerciais e de restaurantes de fast-food.
O charme do antigo agrada-nos. Mantemo-nos entre as ruas e cafés do centro, a longa marginal do Princess Royal Harbour e a reputada Middleton beach.

Sol põe-se e define as silhuetas formadas por eucaliptos altivos, as árvores dominantes no grande sudoeste australiano.
Nove dias e 543 km após a partida de Perth, tínhamos chegado ao ponto final do itinerário.
Pouco tempo depois, apanhamos a Albany Highway e regressamos à capital pelo interior do grande sudoeste australiano.