Se acaso subsistissem dúvidas quanto à excepcionalidade insular do Corvo, a viagem a partir de Santa Cruz das Flores tratou de as erradicar.
Pouco mais de um ano antes, um dos furacões que se formam a oeste da costa ocidental africana tomou um rumo inesperado. Em vez de evoluir na direcção das Américas, apontou a norte. Nos primeiros dias de Outubro, o “Lorenzo” rasou o Grupo Ocidental dos Açores já enfraquecido da intensidade máxima de três dias antes.
Passou junto à ilha das Flores e ao Corvo com rajadas que ultrapassaram os 160 km/h. Nas Flores, a ventania e as vagas causaram danos substanciais no porto das Lajes. Também acabaram com a lancha “Ariel” que, até ao Agosto anterior, assegurara a ligação à Vila do Corvo.
Ao descermos a escadaria para o embarcadouro, com o sol a despertar a leste, algumas gruas ainda finalizavam a reconstrução do porto. Da “Ariel” nem sinal. Em vez, encontramos um semi-rigido, raso mas com motores poderosos.
O mar estava bravo, cavado por vagas vigorosas que castigavam o porto.
Por algum tempo, ainda esperámos que aparecesse um ferry a sério, uma embarcação que nos impressionasse pela sua dimensão, não pela potência dos motores. Em vão.
Somos dos primeiros a embarcar. O timoneiro dá ordem que da proa para a popa. Ficamos mais expostos do que desejávamos.
À primeira vista, a saída do porto parecia o trecho complicado por excelência. Mal deixamos a projecção marinha das Flores, as vagas aumentam, mudam de padrões. Sujeitam-nos uma navegação semi-acrobática.

Ilha do Corvo vista do semi-rígido que assegurou temporariamente a ligação entre Santa Cruz das Flores e a Vila do Corvo.
Ilha do Corvo à Vista
Assim mesmo, 45 minutos de saltos entre os baixos e os cimos vertiginosos do Atlântico depois, damos entrada no molhe da Vila do Corvo, capital e povoação única da menor das ilhas açorianas.
Aceitamos uma boleia partilhada com outros três passageiros. Já instalados na pousada, a cada novo minuto, sentíamos agravar-se a ansiedade de ascendermos àquele que era, por excelência, o domínio natural mágico da ilha: o seu Caldeirão.
“Mas querem ir já?” pergunta-nos o Sr. Noel, quando lhe ligamos a pedir um serviço de táxi. “Assim que possa, por favor. Mas porquê, não lhe dá jeito agora?” questionamo-lo. “Estou aí em dez minutos. É só porque vim de lá há pouco e estava tudo fechado.” Mas costuma fechar mais à tarde?” “Não, aquilo lá em cima nunca se sabe. Muda em minutos.” esclarece-nos. “Olhe, vamos já e logo se vê. Daqui, vemos as nuvens a deslizarem a grande velocidade. Devem haver uns intervalos de sol.”
Dito e feito. Enquanto subimos, o Sr. Noel aconselha-nos a não nos aventurarmos pela orla. Com razões fundadas. As nuvens e o vento fustigavam o cimo do Caldeirão. No seu lado oeste, as falésias da caldeira mediam 718 metros acima do oceano. Eram, aliás, uma das elevações costeiras supremas do Atlântico do Norte.
A Visão do Deslumbrante Caldeirão do Corvo
Noel deixa-nos no miradouro do Caldeirão, junto ao início do trilho que a ligava ao fundo. E ao lado de um jipe dos bombeiros da Vila do Corvo, sem sinal de ocupantes mas, tudo indicava, estacionado a postos para socorrer caminhantes acidentados.
Na direcção contrária, o vendaval húmido irrigava a vertente da ilha virada ao oceano, retalhada por minifúndios ondulados.
Ao contrário do que receávamos, àquela hora, as nuvens pouco ou nada entravam no Caldeirão.
Cedemos à tentação. Caminhamos para norte do cimo da orla, curiosos quanto a se não nos revelaria um panorama ainda mais grandioso.
O improviso dura o que dura. Percebemos que estávamos ao nível da caravana de nuvens e que a névoa nos roubava os cenários. Quando descemos para dela nos livrarmos, debatemo-nos com o manto vegetal espesso que ali cobre o solo, feito de tufos de plantas briófitas, musgoso e ensopado.
Fartos das suas armadilhas e rasteiras, regressamos ao miradouro resignados a inaugurar a caminhada em redor do fundo do Caldeirão.

Visitante da ilha do Corvo admira o Caldeirão.
Por fim, a Longa Caminhada de Circum-Caldeirão
Cumprimos uma série dos meandros do trilho.
Até que a visão de umas poucas vacas a pastarem quase no cimo da vertente interior nos sugere fotografias especiais e incita a nova caminhada improvisada, ao longo, e acima e abaixo da curva da orla.

Vacas de raças sortidas pastam pela encosta interior do Caldeirão do Corvo acima.
Mesmo desprezados pelos bovídeos entregues ao pasto tenro sem fim, lá fazemos as nossas fotos.

Vaca a meio da encosta interior do Caldeirão do Corvo.
Regressamos ao trilho. Os ziguezagues descendentes aproxima-nos de um muro em L. E, à laia visual de Ngorongoro açoriano, de uma grande manada multicolor de vacas dispersa pelo ervado aquém da margem arredondada da Lagoa do Caldeirão.
A espaços, manchas de azul destoavam do tecto nevoento da caldeira. Surgiam como bênçãos solares que geravam projecções verde-douradas no declive norte da cratera e que faziam resplandecer a superfície da lagoa.

Vacas devoram o pasto tenro do fundo do Caldeirão da ilha do Corvo.
Prosseguimos trilho fora. Entre as vacas. Logo, pela margem lamacenta da grande lagoa.
Chegados ao ocidente da caldeira, vemo-nos de frente para a versão murada da sua vertente, também ela dividida em fracções geométricas por muros de pedra vulcânica cobertas de líquenes.
E a Ainda Mais Longa Caminhada de Regresso à Vila do Corvo
Quase duas horas de caminhada fotográfica depois, estávamos de volta aos esses que conduziam ao cimo do miradouro. Mesmo se as pernas se ressentiam da ladeira, forçamo-nos a um regresso pedestre à Vila do Corvo.
Aproximamo-nos de um trio de ribeiras que a Estrada do Caldeirão obriga a uma passagem subterrânea: a Riba da Ponte, a do Cerrado das Vacas e a da Lapa.
Por ali, apercebemo-nos de uma profusão de figueiras e de outras árvores de fruto, disputada pela maior e mais barulhenta colónia de estorninhos que testemunhámos em muitos anos de viagem.
Não serão os estorninhos a sua principal atracção. O Corvo é idolatrada pelos observadores de pássaros deste mundo. Vistas bem as coisas, até o próprio nome da ilha, estima-se que adaptado do que já constava em mapas genoveses do século XIV, Insula Corvi Marini, o justifica.
Lá abundam aves residentes, terrestres e marinhas. A escala de muitas outras, parte das rotas migratórias entre a Europa e a América do Norte fazem da ilha um destino ornitólogo de excelência.
A riqueza animal do Corvo também reside nos seus espécimes pecuários. Umas centenas de metros abaixo, espantamo-nos com o porte massivo de alguns porcos instalados num curral remediado. Nas imediações, confrontamo-nos com um bode surpreendido pela nossa súbita aparição.
Quanto mais descemos, mais nos embrenhamos na faceta rural da ilha.

Muros e sebes dividem a encosta leste da Ilha do Corvo abaixo do Caldeirão.
A Confraternização Rural com o Sr. Rogério Rodrigues
Junto à confluência da estrada com a Riba da Lapa, reingressamos num seu domínio bovino. Não obstante três ou quatro minifúndios pelo meio, apercebemo-nos de que um corvino transportava bilhas metálicas, na direcção de quatro vacas de raças sortidas, isoladas entre muros e sebes.
Beneficiários de infâncias no campo, sabíamos o quanto as tarefas do campo tinham evoluído desde os longínquos anos 80. Custava-nos a acreditar que, mesmo na remota ilha do Corvo, as vacas ainda fossem ordenhadas à mão.
Decididos a esclarecer o enigma, metemo-nos no caminho entremuros que conduzia àquele cimo. Apresentamo-nos. Pedimos desculpa pela invasão. O sr. Rogério dá-nos as boas-vindas, põe-nos à vontade e, enquanto manuseia as tetas de uma vaca frísia, esclarece-nos. “Pois, numa situação normal não o estaria a fazer. Mas calhou só ter que ordenhar estas quatro. Mesmo mais rápido e fácil com a máquina, o trabalho que dá lavá-la em seguida não compensa.”

Sr. Rogério ordenha uma das suas vacas à mão
Ficamos à conversa uma boa meia-hora. Com paciência de santo, o sr. Rogério continua a responder-nos. Dá-nos um curso intensivo da criação de vacas e produção de leite na ilha do Corvo: as vantagens de criar vacas frísias ou Holstein por comparação, por exemplo, com as Jersey e as Guernsey, o teor de gordura no leite e o seu valor, entre tantos outros ensinamentos que retivemos para todo o sempre.
O Trecho Derradeiro e o Anoitecer Mágico da Vila do Corvo
Por nós, teríamos ficado mais umas horas naquele delicioso convívio mas, não tarda, iria escurecer e inda estávamos longe da Vila do Corvo.
Despedimo-nos. Voltamos à Estrada do Caldeirão sob a supervisão do cão do Sr. Rogério que nos acompanhou da caixa-trono da também já sua pick up, interessado, sobretudo, num rápido retorno do dono.

Cão aguarda pelo regresso do corvino Sr. Rogério de uma demorada ordenha manual.
Atingimos o ponto panorâmico sobranceiro face à fajã, com o sol prestes a assentar no ocidente atlântico sem fim. Dali mesmo, contemplamos o ocaso e o lusco-fusco que sempre o confirma.
Vemos as luzinhas cor-de-fogo da Vila do Corvo iluminarem o seu casario, apertado na ponta sul da ilha, entre a vertente do vulcão e a pista quase anfíbia do aeroporto. Vislumbramos ainda o cintilar longínquo de alguns candeeiros das Flores, sob um céu arroxeado de chuva.

Noite cai sobre a Vila do Corvo e a ilha das Flores.
Seguimos directos para um já urgente jantar. Após o que nos deixamos dormir, embalados pelo ribombar soporífero do Atlântico.
Vila do Corvo. Capital e única Povoação da Ilha do Corvo
O sol outonal da manhã incita-nos a despacharmos o pequeno-almoço em três tempos e voltarmos a sair.
Guiados pela torre da Igreja da Nª Srª dos Milagres, seguimos directos para a Rua da Matriz. De onde passamos para o varandim sobre o porto, a enseada pedregosa e com vista privilegiada para o casario que se estendia pela encosta íngreme acima.

Enseada abaixo da Vila do Corvo.
Caminhamos pelas suas ruelas e canadas, intrigados pelas linhas do mini-veículo amarelo do lixo, não nos espantaríamos se soviéticas.
Desviamos para uma tal de rua do Rego. Paredes meias com a escarpa que encerra a povoação, um painel de azulejo ilustra um episódio mais memorável que tantos outros da história do Corvo.
Na gravura azul e branca, benzidos por uma figura da Nª Senhora, corvinos ancestrais lançam grandes calhaus falésia abaixo, sobre invasores infiéis recém-desembarcados.
A imagem alerta-nos para o facto de, ao longo da colonização da sua ilha, os Corvinos terem vencido adversidades bem mais sérias que o mero isolamento.

Sector do casario da Vila do Corvo com a Igreja da Nª Srª dos Milagres à esquerda.
A Descoberta e a Colonização Atribulada da Ilha do Corvo
O Corvo e as Flores foram descobertas por Diogo de Teive, no regresso da sua expedição à Terra Nova, de 1452. Daí em diante, o imponente Monte do Caldeirão passou a servir de Norte aos navegadores.
A tentativa de colonização pioneira só se deu mais de um século depois, por cerca de trinta habitantes da Terceira. Tanto essa como a seguinte terminaram com abandonos forçados.
A bem-sucedida, só foi conseguida, em 1548, quando Gonçalo de Sousa, capitão donatário do actual Grupo Ocidental recebeu permissão da Coroa para a iniciar com escravos – crê-se que oriundos de Santo Antão, Cabo Verde, mais tarde, colocados ao serviço de camponeses e criadores de gado já com provas dadas.

Moinhos pitorescos no limiar da Vila do Corvo.
Durante a segunda metade do século XVI e XVII, como ilustrava o painel de azulejo, o Corvo viu-se vítima de ataques e saques perpetrados por piratas da Barbária.
Quando nem estes ataques demoveram os corvinos de continuarem na sua ilha, percebeu-se que a tinham colonizado em definitivo, com toda a alma e coração.
Esse sentimento de pertença, a par da exuberância natural e vulcânica, fazem do Corvo uns Açores ainda mais especiais.
Do Corvo, regressámos às Flores. Uns dias depois, ao aterrarmos na Graciosa, completámos a nossa descoberta particular do arquipélago.