Em Maio de 2023, tínhamos percorrido uma pequena parte do litoral imenso do Deserto do Namibe angolano e do PN Iona que o protege.
Em pleno Cacimbo e época de Calemas, mesmo na maré vazia, as vagas do Atlântico atingiam a base da zona dos Riscos, conhecida por não perdoar deslizes, muito menos inconsciências.
Ficámo-nos pela sua entrada.

Riscos: a frente de dunas do Deserto do Namibe, que terá inspirado o nome Baía dos Tigres.
A segunda oportunidade, surgiu-nos logo no ano seguinte, a meio de Dezembro, um dos meses com o mar e marés favoráveis à empreitada.
Partimos de Moçâmedes sobre as cinco da manhã, a aurora ainda por despertar.
Em boa parte do tempo, com a bola do sol a ascender, fogosa, sobre o deserto, cumprimos o mesmo trajecto do ano transacto.
Incluindo uma passagem por Tombwa (antiga Porto Alexandre) onde os condutores dos jipes diminuem a pressão dos pneus para locomoção sobre areia e, já muita areia depois, pelas sete, o devido registo no portal do Parque Nacional Iona.
Quando nos aproximamos da linha de rebentação, percebemos que, desta vez, sem Cacimbo nem Calemas, as vagas se mantinham suaves. Afastadas do fundo das dunas.
Experientes naquelas andanças, Alfredo, Elvis, Gomes, Vanessa, a equipa da Explore Namibe, tinham a jornada programada a contar com as marés.
Enquanto avançamos, o mar recua ainda mais. Ao chegarmos à secção mais apertada, de quase 60km dos Riscos, as dunas listadas que se estima terem inspirado o nome Baía dos Tigres, temos disponível um areal considerável.
Continuamos.
Surpreendemos comunidades de caranguejos escarlates surgidos das ondas, nelas sumidos.
Sobrevoam-nos bandos de cormorões, sucessivos negrumes sincronizados, daqueles que seguem a Corrente fria de Benguela, de olho nos movimentos dos cardumes.
Passamos por leões-marinhos incomodados com a invasão.

Leão-marinho incomodado pela passagem dos jipes, na beira-mar do Deserto do Namibe
Contadas quase duas horas de viagem espartilhada entre o Atlântico e as dunas monstruosas do Namibe, atingimos o primeiro meandro e saliência arenosa do percurso.

Vista aérea do Deserto do Namibe, com um jipe a percorrer a base das dunas
Detemo-nos.
A Navegação da Orla do Deserto do Namibe à Ilha dos Tigres
Lá nos espera o “Uniangola”, um barco diminuto.
Tem a função de assegurar um transbordo curto para uma embarcação de pesca maior, ao serviço de outros passageiros chegados noutros jipes.

Jipes aproximam-se da zona de transbordo para a Ilha dos Tigres
Com demasiada frequência, a navegação dos cerca de 10km que dali dista a ilha é feita a bordo de chatas ou Zodiacs, em especial no primeiro caso, sem garantias mínimas de segurança.
Alfredo explica-nos que, também em função do número de passageiros, e por ser sábado, um barco de pesca russo ao serviço a partir de Moçâmedes cumpria uma espécie de part-time providencial.

Tripulação de barco russo de pesca que assegurou a viagem para São Martinho dos Tigres
São aliás um capitão e uma pequena tripulação russa quem nos acolhe a bordo.
Com a lotação esgotada e ajustada ao convés, zarpamos. Durante quase uma hora, navegamos para ocidente, num mar calmo.
Cruzamo-nos com mais leões-marinhos, com tartarugas e até uma baleia-de-Bryde acrobata.
Até que temos um vislumbre inicial do que era o destino da viagem.
Destacam-se umas poucas chaminés, de tijolo e torres-depósito de água.

Antiga fábrica de processamento de peixe
Às tantas, uma torre de igreja sobranceira.
Enquadradas entre o azul celeste e o azul-verde do mar, definem-se outras edificações.
Pouco mais altas que os 10 metros de altitude máxima da ilha, em tudo distinta da frente de dunas com entre 100 a 200 metros de altura de que provínhamos.

Vista monumental das linhas de dunas em frente à Ilha dos Tigres
O navio acerca-se.
A mesma chata até ali rebocada leva-nos ao areal da ilha.
Desembarque na Remota e Fantasma São Martinho dos Tigres
Num ápice, ficamos à entrada de São Martinho dos Tigres, fulcro civilizacional da antiga Baía dos Tigres.
Alvo dum périplo aturado e estudo fotográfico cuidado que, apesar do sol abrasivo e da aridez da atmosfera, inauguramos.

Escrito acima da entrada da igreja de São Martinho reclama “Esta é a Casa de Deus”
Começamos por explorar a igreja amarela.
A sua porta principal exibe, em relevo, “Hic Domus Dei”. Apesar de Casa de Deus, o templo católico está, há muito, abandonado aos elementos e a sucessivos vandalismos.
A igreja surge no centro dum povoado disseminado pela vastidão arenosa da ilha, 32km de extensão por 6 de largura, num total de quase 100km2,

Vista aérea de São Martinho dos Tigres, desde 1975, abandonada ao tempo e ao deserto
O que não faltava aos colonos pioneiros e audaciosos era espaço.
Como depressa constataram, faltava tudo o mais.
Passamos da igreja para a rua larga e longa que também servia de pista de aviões.

A Pista de aviação, ao mesmo tempo, a rua principal de São Martinho dos Tigres
Dizem-nos que, foi preparada a preceito.
A areia que os vendavais para ali arrastam do Namibe quase nela não se acumula.
Amontoa-se, sim, e muita, em redor do casario disperso.

Uma das casas de São Martinho dos Tigres invadida pela areia do deserto
Foi algo também previsto.
A razão de ser para a maior parte dos edifícios ter sido construída, com inspiração palafítica, acima de pilares de cimento. Passamos pela velha escola primária, pela delegacia da polícia.
E, claro está, por vivendas, dezenas de vivendas distribuídas de maneira a garantir à povoação uma vida comunitária, mas arejada.

Edifício com arquitectura do estado novo, alinhados ao longo da pista de aviação
O enigma incontornável subsistia no porquê.
No que teria levado aquela gente para aquele fim-do-mundo desértico, ventoso, perdido no oceano e entre o oceano e o vasto Namibe, arredados de qualquer outra expressão civilizacional.

Visitante angolano espojado na areia, diante de um velho depósito de óleo
A Atracção Irresistível da Baía com mais Peixe de Angola
Por estranho que possa parecer, a razão de ser de São Martinho dos Tigres e da colónia algo alucinada da Baía dos Tigres foi só uma.
A abundância quase surreal de peixes nessa mesma baía, em que as águas frígidas da Corrente de Benguela emergem carregadas de plâncton e alimentam um complexo ecossistema marinho.

Leões-marinhos inspeccionam o barco e passageiros
A riqueza da baía já era conhecida desde o século XVII. De tal maneira que aparecia assinalada em mapas portugueses e ingleses como “A Grande Baía dos Peixes”.
Avancemos até 1840. Só neste ano as autoridades portuguesas dotaram Moçâmedes de um forte, o da Ponta Negra.
A súbita protecção atraiu colonos. Uma comunidade que aumentou a bom ritmo com gentes chegadas de Benguela, várias, atraídas pelo potencial piscatório do extremo sul de Angola.
Decorridos três anos, um grupo de algarvios inaugurou uma operação pesqueira.
Confirmou-se de tal forma produtiva que granjeou contribuições directas da rainha Dª Maria II, a mais famosa, na forma de vários milhares de anzóis.
O número de algarvios, sobretudo de olhanenses, aumentou sobremaneira.
A partir de Moçâmedes, embarcados numa panóplia de embarcações, amiúde rudimentares e inseguras, zarpavam para longas pescarias, às vezes, de mais de um mês, no Atlântico ao largo.

Membros da equipe preparam uma chata para embarque.
A abundância de peixe ainda maior da Baía dos Tigres, justificou que, em 1865, lá se estabelecessem alguns desses algarvios ousados.
Abundância de Peixe, Carência de Tudo o Resto
Careciam de água potável, de alimentos frescos, de lenha para cozinharem e, no Inverno, para se aquecerem, ao ponto de se terem habituado a usar cabeças de peixe seco como combustível.
Nesses tempos pioneiros, tudo lhes chegava por barco, adquirido aos mercadores de Moçâmedes. Os dias em que as embarcações chegavam, chamados de “dias do pão fresco” geravam um alívio e felicidade efémeros.
O fim dos mantimentos e o isolamento provaram-se apenas duas das dificuldades.
Com frequência e por períodos longos, o Namibe soprava para ali vento fortes, carregados de areia perfurante que picava a face, que atrofiava a respiração, que entrava pelas casas abarracadas, que tudo invadia.
Pouco nos custa a imaginar tal cenário e desconforto.
Ao cirandarmos entre os edifícios, até as casas mais elevadas encontramos repletas de areia. Várias, aliás, quase pela areia engolidas.

Outra perspectiva de como as areias do Namibe tomam conta de São Martinho dos Tigres
Até 1920, o povoado desenvolveu-se de forma comedida, apenas devido às iniciativas dos pescadores.
Para o governo colonial, fazia pouco sentido investir num povoado de tão complicada sustentabilidade quando essa aposta estava a ser feita nas já rentáveis Moçâmedes e Porto Alexandre.
Norton de Matos e o Início do Apoio Português aos Audaciosos Algarvios
No ano seguinte, Norton de Matos, há oito anos Governador-Geral de Angola, decidiu-se a apoiar a gente da Baía dos Tigres.

A igreja de São Martinho, há muito a abençoar a povoação abandonada de São Martinho dos Tigres
Mandou instalar um destilador de água salgada capaz de assegurar água-doce de sobra.
O sistema falhava em demasia. Mesmo assim, provou-se o trunfo que permitiu aos algarvios radicarem-se e continuarem a apetrechar a povoação.
Na década de 50, por fim, as autoridades apostaram a sério na comunidade destes Tigres algarvios indómitos.
Encomendou um projecto arquitectónico de dezenas de edifícios, vários deles públicos, casos da escola, da delegação aduaneira, o hospital, o dos CTT de que encontramos as três letras caídas no solo.

Letras CTT caídas em frente ao edifício dos CTT
Tudo, claro está, abençoado pela igreja, baptizada de São Martinho.
Malgrado a geografia e o exotismo natural em que se inseriu, o conjunto recebeu uma adaptação da estética do Estado Novo, uns poucos brasões que subsistem, sublinhavam-na em determinados frontões.

Pormenor de Brasão com escudo d’armas português
Baptizada de São Martinho dos Tigres, a povoação contava também com várias unidades processadoras de peixe e óleo de peixe.
1962: Abastecimento de Água-Doce de Pouca Dura e a Catástrofe da Transformação em Ilha
Augurava já um futuro risonho quando, em 1962, foi abastecida de água doce, canalizada de 75km dali, da foz do rio Cunene, rio que há muito serve de fronteira com a Namíbia, onde aquele mesmo Deserto do Namibe e as suas dunas se estendem por outros milhares de quilómetros.
Pouco depois, no dia 14 de Março, uma calema inesperada e poderosa, diz-se com vagas de 10 metros, fustigou a zona da base que ligava o istmo ao continente.
Dum momento para o outro, a Baía dos Tigres ficou sem o recém-concluído abastecimento de água.
Pior.
De baía passou a ilha.

Vista aérea das Dunas do Deserto do Namibe, Angola
As autoridades e a povoação reagiram. São Martinho dos Tigres voltou a receber água-doce levada por um batelão, armazenada em reservatórios.
No início da década de 70, a povoação tinha 400 casas, habitadas por quase 1100 moradores.
Todos estavam entregues à pesca e à transformação de peixe, que identificamos culminada nas grandes chaminés de tijolo nos depósitos de óleo também usados nos barcos ao dispor dos pescadores e outros.

Estrutura de depósitos de óleos, à beira-mar
A Guerra da Independência de Angola e, em 1975, a Debandada dos Portugueses
Nesses anos, a Guerra da Independência alastrou-se aos quatro cantos de Angola. Incluindo este da província do Namibe. Os abastecimentos tornaram-se impossíveis.
Por outro lado, chegado 1975, e a retirada das forças portuguesas e a Declaração de Independência de Angola, a população de São Martinho, quase toda de origem portuguesa e branca, receou ataques por parte das forças independentistas.
Debandou da ilha e, na quase totalidade, de Angola, rumo a Portugal, à Namíbia, à África do Sul.
No contexto bem mais bélico e caótico da Guerra Civil Angolana, São Martinho dos Tigres ficou abandonada ao deserto, ao Atlântico e à ruína.
Assim a deixamos, em absoluto deslumbre.
Sem sabermos até quando.

Jipes deixam a zona de acampamento na direcção dos Riscos
GOT2GLOBE ACONSELHA-O A RESERVAR A SUA EXPEDIÇÃO À BAIA DOS TIGRES com a:
EXPLORE NAMIBE
Instagram @explorenamibe
Whats App: +244 934 169 637
UFOLO SAFARIS
Instagram @ufolo_safaris
Whats App: +244 923 610 271
COMO CHEGAR
A TAP flytap.com/booking voa de Lisboa para Luanda várias vezes por dia, por a partir de 470€ ida-e-volta. A TAAG voa de Luanda para Moçâmedes (Namibe) às 3as, 6as e Domingos por cerca 180€ por percurso.