Em Curaçao, em geral, sobretudo entre os moradores de Willemstad, cruzar o canal de Sint Annabaai para norte, pela ponte Koningin Juliana, significa passar para a Banda Abou.
A banda de baixo, que até fica para norte da capital, é a faixa mais próxima da costa ocidental da ilha e, em simultâneo, a zona em que se vai até ao “campo”, se bem que um campo com muito de litoral. É também o nosso rumo. E guia-nos Emlyn Pieters, nativo, sério conhecedor de Curaçao.
Erguida a quase 60 metros de altura, a ponte Koningin Juliana concede-nos vistas panorâmicas privilegiadas sobre o âmago histórico da cidade.
A oeste do grande estuário de Schottegat, surge repleta de edifícios com arquitectura holandesa, com frontões recortados, pintados de um sortido de cores, umas garridas, outras, nem por isso.
Para oriente, o quase-todo do estuário, preenchido com estruturas portuárias e de refinarias, de arredores e arrabaldes, máculas industriais numa imensidão marinha, às tantas salobra e até pantanosa.
Quando deixamos a ponte, temos como primeiro destino o cimo da ilha e um dos seus parques nacionais mirabolantes, o de Shete Boka.
À Descoberta das Bokas do PN Shete Bokas
A proximidade do dialecto papiamento do crioulo e, por afinidade, do português, permite-nos intuir o que nos esperava.
Em Curaçao, como em Aruba e Bonaire, as enseadas recortadas na costa rochosa são tratadas por boka. Na paisagem protegida desse parque nacional, contavam-se sete.

Letreiro da Boka Pistol gravado em rocha
Admiramos umas poucas.
Um trilho sulcado sobre um solo rugoso, leva-nos à beira-mar rochosa e agitada da costa leste de Curacao.
Por capricho geológico, uma reentrância na costa devolve as vagas que lá se enfiam na forma de um disparo violento de água salgada.

Água projetada pela formação de Boka Pistol
O fenómeno foi baptizado de Boka Pistol, uma das Shete.
Ali próximo, damos com outra, a Boka Tabla, de nomenclatura inspirada numa plataforma de rocha elevada que dá a ideia de uma mesa.
De novo, ondas poderosas lá se despenham. Ao esbarrarem na sua solidez milenar, a formação projecta-as para o ar, se bem que numa amplitude bem maior que o refluxo marinho da Boka Pistol.

Visitantes do PN Shete Bokas, num trilho do parque
Chegamos a uma hora de maré favorável.
Conseguimos descer para uma gruta soturna, de maneira a termos uma visão invertida dessa mesma Boka Tabla.
Uma barreira protege quem ali desce de ser arrastado para o mar. Não vá o destino fazer das suas, um aviso à entrada alerta que a incursão se faz por conta e risco de que nela se mete.
Assumimos o desafio.

Vagas invadem gruta da Boka Tabla, PN Shete Bokas
Ajustados à barreira, vemos as vagas invadirem boa parte da gruta azulada e nevoenta, algumas, a desfazerem-se abaixo dos nossos pés. Regressamos sãos e salvos à superfície ofuscante.
Revertemos no trilho de acesso, ao longo de uma barreira de arbustos rígidos, mesmo assim, tombados pelas constantes ventanias.
Westpunt, o Éden Balnear de Curaçao
Dali, mudamo-nos para Westpunt, no litoral oposto da ilha.
Emlyn conduz-nos até uma tal de Playa Piskadó, mais convencional, com areal, bares e restaurantes, tudo, partilhado por uma comunidade de veraneantes entregues ao sol e a um mar das Caraíbas sedutor.
Lá nos espera Andy. Está previsto experimentarmos dois dos seus Seabobs, pequenos veículos aquáticos eléctricos que permitem uma exploração submarina mais vasta e ágil. Andy explica-nos o funcionamento.
Parece-nos simples. Instantes depois, já vagueamos os três, como golfinhos motorizados, acima de bancos de coral, no meio de cardumes tão ou mais exuberantes.

Tartaruga no mar da Playa Piscadô, Westpunt
Para nossa surpresa, na companhia de tartarugas, entre o intrigado e o apreensivo.
Mesmo propulsionados, a navegação submarina drena-nos as energias. Emlyn tinha-o previsto. Sobre a hora de almoço, recuamos meros 400 metros na estrada de acesso à praia.
Jaanchie’s, um Restaurante Histórico de Westpunt
Instalamo-nos num dos restaurantes mais antigos e emblemáticos de Curaçao, o Jaanchie’s, inaugurado em 1936, desde então, gerido por três gerações de curaçauenses.

Sr. Janchie o proprietário do restaurante “Jaanchie’s”
Emlyn apresenta-nos o sr. Jaanchie. Como o faz há muitos anos, o anfitrião explana-nos o menu do dia, criado na véspera.
Mesmo se se trata de um prato algo polémico, pedimos o famoso guisado de iguana, saboroso, com o senão duma expectável abundância de ossos e ossinhos.
Provamos outras especialidades e, para encerrar, dois dos famosos punchs de orégãos da casa.

Convivas à mesa do “Jaanchie”
Tagarelamos um pouco, rendidos à atmosfera despretensiosa, acolhedora e arejada a que a decoração pejada de instrumentos de música, pinturas, fotografias, mapas e uma panóplia de outros elementos da ilha conferia uma alegria peculiar.

Parede repleta de memórias
Contadas quase duas horas de um repasto revigorante, retomamos o périplo. Em meros dez minutos, Emlyn prenda-nos com nova recompensa balnear.
Kenepa Grandi. A Playa Perfeita e a Fazenda em Tempos Esclavagista
Detemo-nos na Playa Kenepa Grandi, uma das mais deslumbrantes da ilha, feita de um mar translúcido de tom turquesa que afaga um areal coralífero bem alvo, numa enseada ampla delimitada por encostas verdejantes.
Contemplamos esse novo cenário dum recanto elevado e panorâmico.

Banhista salta para o mar translúcido da Playa Kenepa Grandi
Logo, descemos. Enfiamo-nos na água e refrescamo-nos. Assim que secamos, apontamos a uma plantação histórica homónima.
A Landhuis Kenepa foi construída em 1693. Em pouco tempo, os proprietários tornaram-na uma das maiores e mais rentáveis de Curaçao, criadora de ovelhas, de sementes e pés de Divi-divi, uma árvore icónica das ilhas ABC, leia-se Aruba, Bonaire e Curaçao.
O Escravo Tula e a Grande Rebelião de 1795
O sucesso desta fazenda resultava, todavia, de força de trabalho escrava, em boa parte, trazida dos entrepostos esclavagistas portugueses como a Cidade Velha de Cabo Verde e outros da actual Guiné, a razão de ser para a génese crioula do dialecto papiamento.
Ora, chegado Agosto de 1795, um escravo de Kenepa conhecido como Tula liderou uma rebelião que se estendeu por mais de um mês. O rebelde acabou aprisionado e executado e o esclavagismo perdurou por quase um século mais. Tula é, hoje, tido na ilha como um herói.
Como um lutador pelos direitos do homem que culminaram com a autonomia de Curaçao no Reino dos Países Baixos que inclui outras ilhas caribenhas, caso de Saba e Sint Maarten.
Foi-lhe inclusivamente dedicado um museu, em Lagun. Por sua vez, “Tula: the Revolt” (2013), um filme holandês de Jeroen Leinders, dramatiza o acontecimento histórico.
Continuamos rumo a sul. Num trajecto mais longo, Emlyn leva-nos a Sint Willibrordus, lugar de uma enorme salina afundada numa imensidão verdejante, coberta de arbustos e cactos espinhosos, salpicada de casas baixas.
Sint Willibrordus, a Igreja Homónima e o Santuário de Flamingos
Uma igreja neo-gótica amarela desponta desse mar de verde, já com o azulão do Mar das Caraíbas na iminência.
Foi erguida em 1888, baptizada em homenagem a um monge e missionário que se veio a tornar Bispo de Utrecht.
Até então, os holandeses tratavam a povoação por Buitenbosch, os faladores de papiamento por Mondi Afó.
Nos nossos dias, Sint Willibrordus é mais conhecido pelo seu santuário de flamingos, aves abundantes no trio das ilhas ABC.

Flamingos no santuário de Willibrordus, com a igreja de Sint Willibrordius acima
Lá os encontramos, em diversos bandos escarlates, entregues às prospecções de algas e pequenos crustáceos que lhes conferem tal tom.

Carcará no cimo duma árvore da zona de Sint Willibordus
Admiramo-los e fotografamo-los por algum tempo, sob o olhar compenetrado de um carcará que sondava presas na vegetação em volta.

Dois dos muitos flamingos do sanctuário de Sint Willibrordus
Entretanto, viramos as atenções para um monumento insinuante.
No cimo de uma coluna, uma mão segura um grilhão quebrado, o conjunto todo branco, a cor da paz. Remete-nos de volta à era da escravatura e à crueldade colonial a que Curaçao esteve entregue.
A abundância de sal levou a que por ali se tivesse instalado outra fazenda, a de Jan Kok, esclavagista como a de Kenepa.
A sua acção, tão ou mais desalmada, levou a que as autoridades da ilha lá se decidissem a celebrar a libertação dos escravos e o fim desses tempos, denunciados numa inscrição, a meio da coluna.

Visitante fotografa monumento da libertação da escravatura de Sint Willibrordus
Regresso a Willemstad e a Destilaria de Blue Curaçao de Chobolobo
Estávamos a pouco mais de 20km de Willemstad, a capital faustosa, erguida, em boa parte, graças a séculos de trabalho escravo. Depois de lá reentrarmos, já com a Banda Abou para trás, fazemos um desvio providencial.
O objectivo era visitarmos a destilaria daquele que será, atrevemo-nos a estimá-lo, o produto mais notório de Curaçao. Viajamos, assim, até Landhuis Chobolobo, uma mansão do século XIX, grandiosa e, para não variar amarela.
Produz, desde 1896, o licor Blue Curaçao, há muito consumido em redor do Mundo. A bebida foi criada a partir das cascas dum tal de citrino Laraha, estima-se um tipo de laranja com sabor amargo característico, na realidade, derivada da levada, ainda no século XVI, pelos colonos espanhóis pioneiros, de Sevilha.
Em Curaçao, o solo árido e o clima muito mais seco, tornaram os frutos das árvores demasiado amargos para consumo.
Apesar disso, a importância dos seus frutos e cascas na elaboração do licor granjeou-lhes presença na metade direita do brasão da ilha.
A autoria do licor ainda hoje é disputada ente Lucas Bols (Bols Company) e a Senior & Co, de Senior e Chumaceiro, este último, um judeu de ascendência portuguesa, como tantos outros expulsos da Península Ibérica e, mais tarde, do Brasil, que transpuseram as suas vidas para a Holanda e para Curaçao, onde a comunidade judaica sefardita é ancestral e profícua.
Em Chobolobo, na fábrica da Senior & Co, apreciamos o processo de embalamento e rotulagem de centenas de garrafas com líquido verde.

Trabalhadoras colocam rótulos em garrafas de Blue Curaçao
Apesar do nome da bebida, a Blue Curaçao é comercializada sob diversas cores.
Pelo menos nove distintas, do azul-vivo ao cor-de-laranja.
Como as vimos expostas numa parede-montra da destilaria, tons adicionados a um líquido base transparente.

Garrafas de Blue Curaçao expostas na distilaria de Chobolobo
A Senior & Co clama ser a única empresa criada em Curaçao e a ter sempre produzido o licor apenas a partir das ditas larahas da ilha. Rotula-o, assim, como o “Licor Genuíno de Curaçao”.
Parte da visita, provamo-lo em distintas cores e respectivas variantes de sabor.

Um das salas da destilaria de Chobolobo
Em seguida, regressamos a Willemstad.
Com o interesse mais que redobrado para o que a capital e Curaçao ainda nos reservassem.
Como Ir
Voe para Willemstad com a KLM, via Amesterdão, Países Baixos, por a partir de 830 euros ida-e-volta.