O centro colorido, quase de lego, de Kralendijk, a capital de Bonaire, fica para trás.
Ascendemos na ilha pela sua Queen Highway, uma via que acompanha o litoral suave, tom de turquesa e apelativo virado a ocidente, oposto ao oriental, em que os ventos Alísios agitam o Mar das Caraíbas.
A estrada aperta. Enfia-se entre falésias de calcário cobertas de vegetação verdejante. Um sinal de trânsito alerta para a travessia frequente de praticantes de mergulho.
A sua razão de ser surge logo depois, no fundo de uma escadaria, baptizada como dos 1000 Degraus, que permite aos mergulhadores acederem a um domínio marinho e coralífero prodigioso. Haveríamos de lá nos deter.
Naquele momento, a prioridade estava na área protegida mais antiga das Antilhas Holandesas, o Parque Nacional Washington Slagbaai.
Prosseguimos Queen Highway acima. Aqui e ali, distraídos por propriedades com vedações feitas de cactos, uma matéria-prima quase inesgotável em Bonaire, de que ainda só tínhamos admirado uma ínfima parte.
Por fim, a estrada real desemboca noutra, perpendicular. Pela Kaminda Goto – assim se denominava – internamo-nos na ilha, ao longo de um braço lacustre que, não tarda, se uniria a um corpo de água principal.
Mickael, um holandês que se tinha mudado para Bonaire havia três anos e que nos conduzia desde Kralendijk, detém o jipe. Anuncia a paragem inaugural do périplo. “Rapazes, aqui têm o Goto.

O lago Goto, o maior do do PN Washington Slagbaai
É um lago muito especial, o maior lago de água salgada da ilha.” Daquele ponto panorâmico, assistidos pelas explicações do guia, depressa concordamos.
Destacada acima da vegetação da margem imediata, uma sebe natural de cactos-de-punhal fere de verde o azulão do lago. Bem mais sobranceiro face ao norte do lago, ergue-se Brandaris, a colina que, com os seus 241 metros, marca o zénite da ilha quase rasa de Bonaire.
No que dizia respeito ao Goto, o motivo de interesse que atraía a maior parte dos visitantes, concentrava-se ao nível da água, num tom que quebrava a aliança verde-azul da paisagem.
Dezenas de flamingos salpicavam o lago de linhas curvas escarlates.

Bando de flamingos no lago Goto
Formavam apenas um de vários bandos habituados a nutrir-se e a reproduzir-se nas águas interiores, repletas de alimento de Bonaire. Admiramos o bando mover-se numa coreografia graciosa de pescoços e bicos, ora emersos, ora afundados.
Entretanto, Mickael dá o sinal de debandada. Prosseguimos. Contornamos o lago Goto. Aproximamo-nos da elevação Brandaris. Logo, viramos a noroeste, de volta à costa ocidental.
Por uma imensidão cada vez mais densa de distintos tipos de cactos. Damos a volta aos braços recortados de uma salina vasta, Slagbaai. O lugar que agora buscávamos ficava numa orla de quase contacto desta salina com o Mar das Caraíbas.
Conhecida por Boca Slagbaai, era epónima do parque nacional que a envolvia. Em grande parte, por ter desempenhado um papel controverso, mas crucial na colonização holandesa de Bonaire.

Panorama da Baía Slagbaai com os edifícios sede da antiga base produtora colonial
Lá damos com uma baía de mar translúcido que molhava a areia alva, de coral desintegrado. Edifícios térreos, amarelos, com telha ocre, sobrepunham-se ao areal.
Cirandamos em redor. Tomamos um trilho dissimulado e ascendemos ao cimo da encosta a sul. Dali, apreciamos o conjunto multicolor, com o verde da colina Brandaris projectado acima dos edifícios.
Com tempo para tal exercício, transpomos aquele lugar de mar quase imóvel para o mapa da ilha e das Caraíbas.
A Boca Slagbaai ficava num dos pontos de Bonaire mais protegido das tempestades provindas do Atlântico. Em simultâneo, estava virada para a ilha-mãe das Antilhas Holandesas, Curaçao.
No contexto da Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), em jeito de retaliação pela perda de Sint Maarten, os Holandeses tomaram Curaçao, Aruba e Bonaire a Espanha. Fizeram de Curaçao o principal entreposto de escravos holandês das Caraíbas.
Ainda no século XVII, a sua Companhia das Índias Ocidentais instalou, na enseada e para interior, a principal base produtiva das Antilhas Holandesas.
Escravos africanos lá trabalhavam na produção de carne de cabra. A origem do nome Slagbaai, está, aliás, no termo holandês slachtbaai, traduzível como Baía da Matança.

Falésia pejada de cactos que limita a Baía de Slagbaai
Além da carne, os escravos produziam madeira e grandes quantidades de sal. Os produtos de Slagbaai garantiam a subsistência da população – a livre e a escrava – que aumentava a forte ritmo, sobretudo, na capital do arquipélago, Willemstad.
Serviam ainda para alimentar e fornecer de água e madeira os barcos que navegavam entre Amesterdão e as Américas. E, quando possível, para exportação para a Europa, como era o caso do sal, que Bonaire tinha e continua a ter em abundância.
Reza a história que os holandeses degredaram ainda prisioneiros espanhóis e portugueses na ilha, à época, habitada pelos poucos nativos caquetios que tinham sobrevivido à colonização espanhola.
Diz-se que estes proscritos fundaram a actual povoação de Antriol, nome que terá derivado da alteração do termo espanhol “al interior”.

Árvore cresce de uma falésia rochosa
Slagbaai, essa, a meio do século XIX, em virtude da falência da Companhia das Índias Ocidentais, passou para o estado holandês. Poucos depois, a abolição da escravatura alastrou-se pelas colónias.
As plantações – na realidade, a gestão de Bonaire no seu todo – revelaram-se inviáveis. O estado holandês vendeu a maior parte das terras a privados.
Dois irmãos de apelido Herrera, adquiriram Slagbaai. Rebaptizaram a fazenda de América.
Dotaram-na de novas estruturas: uma casa de capataz, uma loja e um escritório. Por ser o fulcro administrativo da propriedade, chamaram-no de Washington.
Na década de 60, o governo holandês readquiriu a propriedade, sob as condições de que não a venderia a empresários e de que a transformaria na área protegida imensa (21.79 km2) pioneira de Bonaire.

Duo de melocactus, um de vários tipos de cactos de Bonaire
Continuamos a desbravá-la.
De Slagbaai, cortamos pelo âmago da ilha.
Até chegarmos ao seu absoluto píncaro setentrional, acima de uma salina enorme conhecida por Bartol que acolhia outro bando de flamingos.
No trajecto, sempre entre cactos e arbustos ásperos e cortantes, encontramos representantes distintos da fauna local.

Uma das inúmeras iguanas do PN Washington Slagbaai e de Bonaire
Um bom número de carcarás, uns em voo, outros em disputas pousadas. Iguanas, e cabras, claro está.
Os caprinos, dedicados a devorarem pedaços de cactos que, contra todas as evidências, tinham como comestíveis.

O Farol Seru Bentana
No caminho para o farol de Seru Bentana, um dos mais antigos dos cinco de Bonaire, cruzamo-nos ainda com burros deambulantes.
À imagem das cabras, introduzidos na ilha durante os tempos coloniais.

Burro deambula na paisagem do leste do PN Washington Slagbaai
Já no cimo absoluto de Bonaire tínhamos constatado como a meteorologia contrastava com a do litoral oeste.
Dali, pela costa abaixo, passamos por sucessivas bocas (baías) recortadas que os Alísios fortalecidos pela intempérie castigavam com um vendaval infernal e ondas traiçoeiras.
Mickael conduz-nos a outra dessas enseadas recortadas e profundas a que o mar revolto não deixava perceber areal.
Uma abertura na costa rochosa fazia, a cada vaga mais vigorosa, projectar para o ar uma espécie de géiser frio e alargado.
Fotografamos momentos impressionantes do fenómeno quando um visitante a ele se faz.

Visitante junto ao soplado (respiradouro marinho) do PN Washington Slagbaai
Por certo já conhecedor do sítio, coloca-se do lado do vento, o mesmo de que provinham as ondas.
Na iminência algo assustadora da rebentação, exemplifica a um amigo como a água do blow hole – soplado no excêntrico dialecto papiamento – era projectada à frente dos seus narizes, sem quase os borrifar.
Progredimos para sul.

Cenário rugoso do litoral leste do PN Washington Slagbaai
Por vias de terra batida ensopadas pela chuva ainda miúda que irrigava a árida Bonaire.
Ao longo de fracturas geológicas e de falésias de que, na passagem dos milénios, o Mar das Caraíbas se tinha afastado.
Por quase trilhos afundados em sebes de cactos-de-punhal, muitos, com quatro e cinco metros de altura.

Jipe percorre uma estrada ladeada de cactos-de-punhal do PN Washinton Slagbaai
Atingimos uma tal de Boca Chiquitu, uma grande falha no rebordo leste de Bonaire, que estreitava do mar para dentro, até se ligar ao caudal de um riacho efémero.
Duas placas vermelhas, uma escrita em inglês/holandês, a outra, em papiamento/espanhol alertavam: “Cuidado. Ondas e correntes muito perigosas”.

Entrada para a Playa Chikitu, uma de várias da costa leste de Bonaire
Uma chuva já a sério alia-se ao vendaval.
Aversos a tendências suicidas, com a volta ao PN Washington Slagbaai completa, cruzamos metade de Bonaire na diagonal, apontados ao abrigo urbano de Kralendijk.
Como Ir
Voe para Kralendijk com a KLM, via Amesterdão, Países Baixos e Oranjestad Aruba, por a partir de 830 euros ida-e-volta.
Em Kralendijk, poderá contactar a Voyager Bonaire: voyagerbonairetours.com ; +599 700 41 23 ; +599 717 4123 para reservar o seu tour ao PN Washington Slagbaai e outros.