Mês após mês, mais intensa durante a Primavera e Verão, a cena repete-se.
Em parques de estacionamento, à entrada das praias, grupos multinacionais de jovens entusiasmados tagarelam enquanto, a custo, se enfiam em fatos de neoprene desafiantes.
As suas incursões dependem do que o oceano reserva.

Surfistas descem para a praia de São Sebastião
A praia mais frequentadas têm sido as do Matadouro e a de São Sebastião, esta, desde o século XVI, abençoada pela elegante capela homónima, logo acima.
São ambas longas, pródigas em ondas comedidas, ideais para que os aprendizes pratiquem o posicionamento e o equilíbrio sobre pranchas desafogadas, próprias para iniciantes.

Surfista na Praia do Matadouro
Em dias de mar vigoroso, também é normal encontrá-los, mais atafulhados, na Praia dos Pescadores.
Desde que o grande molhe que a protege da fúria do norte permita a entrada de vagas aproveitáveis, algo pouco frequente.

Vista aérea da Ericeira com o molhe construído para proteger o porto do mar tempestuoso do norte
A Emergência da Ericeira no Mapa Mundial do Surf
Há muito que a Ericeira é idolatrada por surfistas.
À imagem do que aconteceu com a divulgação das grandes ondas geradas pelo canhão da Nazaré, a condecoração das reputadas vagas locais com o estatuto de Reserva Mundial:
Pedra Branca, Reef, Ribeira d’Ilhas, Cave, Crazy Left, Coxos e São Lourenço –
bem como as sucessivas provas da World Surf League disputadas em Ribeira d’Ilhas destacaram a Ericeira no mapa de spots de surf obrigatórios à face da Terra.
A economia da vila e da região depressa reflectiu essa notoriedade.

Ocaso a ocidente da Praia de Ribeira d’Ilhas
Aos retiros mais prolongados para trabalhar remotamente e aprender surf, junta-se o influxo de jovens, sobretudo de outras partes mais a norte da Europa que tiram quatro ou cinco dias de férias para se recarregarem de energia.
Com o sol e as paisagens deslumbrantes. Com o convívio e as novas relações que as aulas de surf, a praia e as saídas nocturnas proporcionam.
De acordo, as escolas de surf e de outros desportos aquáticos multiplicaram-se.
Como os alojamentos locais, os restaurantes, bares, lojas de equipamento e tantos outros negócios que animam as ruelas azul e brancas ramificadas do coração urbano da vila, a Praça da República, mais conhecida por Largo do Jogo da Bola.

A Praça da República, mais conhecida como Jogo da Bola
De Vila de Pescadores a Abrigo cada vez mais Cosmopolita
A fama do bem-estar e da qualidade de vida superior da Ericeira cruzou fronteiras e mares. Milhares de expatriados compraram e compram casas e negócios.
Numa primeira fase, com prevalência dos franceses.
Nos últimos tempos, um pouco de toda a parte, se bem que se parecem ter intensificado os ensejos de norte-americanos desiludidos com aquilo em que os Estados Unidos de Donald Tump se tornaram, decididos a partirem para paragens sãs.
Um já esperado efeito pernicioso, afinal, comum entre os lugares turísticos portugueses, é a escassez de casas disponíveis e o valor hiperinflacionado das propriedades da vila e arredores.

Entrada para outra das ruas azuis e brancas da Ericeira
Não há bela sem senão.
O preço da beleza e da atmosfera jovem e cosmopolita da Ericeira aumenta a olhos vistos, como acontece com a população residente. Em 1970, viviam na freguesia menos de 2700 pessoas.
Em 2025, esse número deverá aproximar-se dos 13 mil moradores.
Dia após dia, entre os muitos forasteiros que admiram as vistas grandiosas, mas pitorescas do cimo arredondado da Rua de Santo António, do Largo das Ribas e Ruas de Baixo e das Furnas fora, um bom número sente o apelo de se mudar para a vila, de a viver e ao seu litoral dramático e eleito.

Banhistas refrescados na Praia do Sul
Os Pescadores Jagozes e o Privilégio da Praia dos Pescadores
Ao longo dos tempos, a Ericeira manteve-se um domínio de pescadores. De zarpares complicados. De regressos tão ou mais difíceis.
Para ocidente, estende-se o Atlântico sem fim.
Amiúde, tão imenso e traiçoeiro para os jagozes do mar, clientes habituais do Clube Naval, como o é sedutor e estimulante para os alunos ansiosos das escolas de surf.
Contra todas as adversidades, incluindo o recente assoreamento do leito marinho, agravado a sul do molhe e junto à rampa varadouro do porto, os pescadores da Ericeira até podem ser menos, mas mantêm-se a postos.

Estátua de homenagem ao Pescador da Ericeira
“Epá, deviam era tirar aquela tralha toda e fazer uma área de bares, de lazer mais ampla, ali à beira-mar!” diz-nos um ericeirense com espírito empresarial aguçado e que não vamos identificar, pouco sensível ao passado e ao modo de vida secular dos pescadores e suas famílias.
Ao invés, outros que atravessam a área recuada da Praia dos Pescadores, repleta de barcos coloridos com nomes cheios de significado: o “Mestre Ló”, o “Lula” o “Pérola da Ericeira”, deleitam-se com a sua genuinidade algo abarracada.

Barcos de pesca na retaguarda da também conhecida por Praia dos Barcos
Sempre que por lá passamos, a caminho ou de regresso da sessão vespertina de natação marinha, fascinamo-nos com os velhos tractores.
Uns poucos, de tal forma escurecidos de óleo que mal lhes conseguimos perceber a marca. Isto, sem qualquer intenção de menosprezarmos as mais recentes aquisições da comunidade.
Uma grua poderosa que eleva as embarcações do mar para o molhe, atalhando a passagem pela rampa assoreada.
Um novo, grande e impressionante tractor, cremos que um John Deere.

Banhistas num recanto sossegado da Praia dos Pescadores
Tal como acontece com centenas de outros banhistas e desportistas, também nós beneficiamos da paz de espírito e tolerância das gentes da Praia dos Barcos.
Apesar das placas proibitivas, nunca vimos um pescador gritar com um nadador que sulca a rota das embarcações.
Nunca os vimos chatearem-se, sequer, com os miúdos que insistem em usar o molhe e até a nova grua como plataformas para mergulhos.
A Praia dos Pescadores e a Ericeira no Término da Monarquia Portuguesa
Por ali mesmo, um painel antigo de azulejo serve de testemunho da tradição da população da Ericeira em se manter respeitosa e comedida.

Painel de azulejo que informa sobre a partida da família real portuguesa da Praia dos Pescadores, em Outubro de 1910
A placa refere-se a um acontecimento de 5 de Outubro de 1910. Um dos protagonizados pela vila com maior impacto na história portuguesa.
No dia anterior, de manhã cedo, o Presidente do Conselho de Portugal alertou o rei D. Manuel II para urgência de fugir para Sintra, ou ainda melhor, para Mafra. As forças republicanas estariam prestes a bombardear o Palácio das Necessidades em que se abrigava.
Por algum tempo, orgulhoso, o rei resistiu à retirada. Quando os projecteis começaram a cair, acedeu. Por volta das quatro da tarde, a comitiva deu entrada no Palácio de Mafra.
O rei passou lá a sua última noite em Portugal. No dia seguinte, a afirmação da República e a agitação gerada forçaram o governador civil a erguer, em Mafra, a bandeira republicana. O rei apressou-se a chegar à Ericeira e a abastecer-se com cestos de peixes e outros víveres.
Umas poucas barcas levaram a família real e bandeira azul e branca para bordo do iate “Dona Amélia”, num exílio, primeiro para Gibraltar, depois para a Grã-Bretanha (o rei) e a Itália (a rainha), com o seu quê de dramático.
Uma multidão de jagozes, assistiu a tudo do cimo do paredão que contem a Praia dos Pescadores e no prolongamento do Forte de Santa Bárbara, erguido em 1706, por D. Pedro II, para protecção da Ericeira e do seu porto. Uns, mostraram-se comovidos, outros satisfeitos.
A maior parte, surpresos. Nos nossos dias ainda republicanos, no exacto lugar desse embarque, a animação provém da música e convívio do bar-esplanada “Kayak” e das sucessivas partidas de vólei de praia ao lado disputadas.

Rampa de descida para a Praia dos Pescadores
Uma Vila (no mínimo) Secular com Origem do Nome Disputada
Por altura da debandada de Manuel II e família real, findos 767 anos de monarquia dinástica portuguesa, a Ericeira contava muitos mais. Estima-se que, por volta de 1000 a.C., já os Fenícios usavam as enseadas locais como escalas das suas navegações.
O foral que a oficializou no território foi emitido pela Ordem de Avis, em 1229. No texto desse foral, pode-se constatar a presença de uma população piscatória importante. A carta define, de forma minuciosa, e até, espécie a espécie, do congro à baleia, como os pescadores residentes deveriam pagar os seus tributos.
Um outro aspecto mais que curioso, intrigante, está na nomenclatura e heráldica da Ericeira. Desde os seus confins temporais que se estimava que o termo tinha surgido de uma adaptação popular de ouriceira.
Abundam, afinal, no litoral da região, ouriços marinhos que, com o tempo, lado a lado com os percebes, mexilhões e afins, os cozinheiros e chefes aprenderam a confeccionar e a valorizar.
Inspiraram ainda, os famosos ouriços, queijadas doces e amendoadas representativas da vila.

Discoteca Ouriço, decorada por uma pintura mural exuberante
Convém não esquecer, de igual maneira, a discoteca mais antiga e, agora, garrida da vila, a da Rua Capitão João Lopes.
E, no entanto, malgrado todas estas derivações, um antigo brasão da Ericeira, preservado no Arquivo-Museu da Misericórdia, exibe, em vez dum ouriço-do-mar, um ouriço-cacheiro, um mamífero nocturno que pouco se deixa avistar.
Se o tema em debate fossem os animais predominantes na Ericeira, mais cedo ou mais tarde, outra espécie entraria na equação. Trata-se do estorninho-preto que, à conta da abundância de figueiras e distintas árvores de fruto, se mudou, aos milhares, de armas e bagagens para vila.
Todos, os dias, sobre o ocaso, admiramos o espectáculo da sua chegada, em bandos ondulantes, a um reduto florestal próximo.
É, aliás, com o sol a pôr-se e a banda sonora do seu piar, que encerramos este texto.

Sol põe-se a ocidente do Forte do Milreu
Como Ir
Via auto-estrada A21 que parte da A8, a Ericeira dista meros 40 minutos de Lisboa. 2h30 do Porto.