Em 1730, os portugueses adicionaram Porto Novo aos seus entrepostos esclavagistas do Golfo da Guiné e lá fizeram aumentar o número de escravos enviados para o Brasil. Após a independência do Brasil de 1822 e sucessivas revoltas, escravos e até mercadores de escravos geraram um movimento de regresso às origens africanas. Hoje, Porto Novo é capital do Benim e uma das cidades beninesas que acolhe a influência destes apodados agudás.
A mera aparição do duo de yovos – leia-se “estrangeiros”, em dialecto fon – junto à grande mesquita de Porto Novo suscita uma confusão que tentamos gerir pelo melhor, tendo em conta os objectivos conflituosos em disputa.
Tentamos fotografar a fachada decadente do templo com a cor suplementar dos vestidos e fatos africanos, jilabas e hijabes dos crentes e vendedoras à sua sombra, outros, de saída de uma cerimónia.
Os presentes, proíbem esse intento, mesmo se retorquíamos com a inverdade de que só nos interessava a mesquita.
A discussão complica-se.
As vendedoras colocam preços nos seus direitos de imagem.

Crentes passam em frente à Grande Mesquita de Porto Novo
“Tu vas me payer mil francs, yovo!”.
Surgem oportunistas que se fazem de guias da mesquita. Pedem cinco mil francos (quase 8€) para nos deixarem entrar.
Dois jovens propõem-nos a visita por metade, viabilizada, à socapa, por uma entrada da fachada oposta.
Investimos em circundar o templo.
De olho nos caprichos arquitectónicos que o ar tropical e marinho degradou ao longo de mais de um século.

A Grande Mesquita de Portto Novo, erguida por afro-brasileiros agudás.
A Edificação Atribulada e Polémica da Grande Mesquita de Porto Novo
A Grande Mesquita de Porto Novo foi erguida entre 1910 e 1935. Em Porto Novo prevalecia o animismo vudu.
Quando confrontado com a importância crescente de comunidades de comerciantes islâmicos e com recém-convertidos súbditos de etnia Yoruba, o rei Sodji (1848-1864) fez-lhes a vontade.
Disponibilizou terras próximas ao palácio real, em que seria erguida uma mesquita.
Em 1880, a mesquita estava pronta. Só que nas imediações de estabelecimentos comerciais ingleses, servidos por funcionários cristãos, avessos ao islamismo. Empregados e patrões queixaram-se ao rei Toffa I (1874-1908) dos chamamentos dos muezzins.
Passado algum tempo, os muçulmanos já reclamaram uma mesquita maior.
Decidido a satisfazer as duas partes Toffa I autorizou que fosse erguida outra num terreno contíguo ao mercado central.

A mesquita moderna vizinha da Grande Mesquita
Ora, ofereceu-o um agudá, um dos muitos afro-brasileiros que, na sequência da independência do Brasil, da abolição da escravatura e de sucessivas revoltas de escravos – com destaque para a dos Malês, na Bahia – decidiram regressar às origens africanas, por essa altura apodados com o termo derivado de Ajudá.
Agudás já regressados da Bahia à Nigéria tinham financiado e supervisionado a edificação da grande mesquita de Lagos, com inspiração na arquitectura das igrejas baianas, em especial das de Salvador.
Necessitadas de orientação, as autoridades de Porto Novo, enviaram uma delegação a Lagos, incumbida de examinar o que lá fora feito. A influência dos agudás voltou a falar mais alto.
A Grande Mesquita de Porto Novo seguiu a mesma inspiração arquitectónica da de Lagos. Terá sido, provavelmente, obra dos mesmos construtores.
O sol tinha caído para oeste da fachada principal, aquela em que resistia uma palete de amarelo, verde, castanho, algum azul, tons deslavados pela erosão tropical.

Vendedoras em frente à Grande Mesquita
Uma Grande Mesquita com Óbvio Visual de Igreja
Vendedores e fiéis refugiavam-se na sombra da lateral norte. Uns poucos, dormitavam, rendidos ao calor opressivo.
Sem a distracção inicial, admiramos a fachada ocidental ao pormenor. Os elementos florais e vegetais moldados no estuque, mas gastos. As camadas de pilastras que sustentam o frontão triangular.
O pináculo dotado de estrela e crescente que coroa o todo. Ainda as duas torres quadrangulares, opostas na fachada ocidental, também finalizadas com estrela e crescente.
Janelas e portas em arco, com molduras de correr, ornamentam as fachadas principais e as laterais, feitas de madeira trabalhada com motivos florais, típico das estruturas afro-brasileiras do Golfo da Guiné.
No exterior, com certeza presentes, os elementos islâmicos em que reparávamos provavam-se pouco notórios, limitados à estrela-crescente e a umas poucas faixas com caligrafia árabe desenhadas no estuque.
Perdiam-se no todo do edifício com estrutura de igreja tão óbvia que, com frequência, os visitantes assumem que a mesquita resultou da conversão de um templo católico português.
Com o passar dos anos, o Islamismo impôs-se, em Porto Novo. Cresceu entre os muçulmanos o desagrado para com a ambígua Grande Mesquita.
Os Yoruba contestaram os agudás e as suas edificações. Mais abastados, socialmente destacados, os agudás prevaleceram. Enquanto templo funcional, a Grande Mesquita de Porto Novo nem por isso.
Espreitamos para dentro de uma porta de serviço, datada de 1912.
Numa ala no seu prolongamento, ventilada por grandes ventoinhas de tecto, convivem 15 ou 20 mulheres, enfiadas em trajes africanos e véus islâmicos.

Mulheres reunidas numa ala da Grande Mesquita
Da Mesquita Nova e Moderna a uma Deambulação pelo Mercado Central
Acessível daquela ala, há uma nova e ampla mesquita, de arquitectura moderna, inequivocamente islâmica.
É de lá que vemos a multitude de crentes saírem, vários, apontados ao mercado central.
Seguimo-los.
Passamos por bancas repletas de frutas e vegetais, de flores, de especiarias e de tecidos africanos.

Vendedora de tecidos no Mercado Central
Outras, à pinha de bugigangas Made in China, de roupa usada, despachada da Europa.
Naquela panóplia disforme enfiada em bancas de madeira e plástico, encontramos um sector de fetiches vudu, quase inevitável, no Benim, se bem que diminuto, se comparado com os mercados de fetiches de Ouidah, Abomey e Bohicon.
Entramos num corredor sombrio, repleto de partes de animais.
Cabeças de macacos, de morcegos, de gatos, antílopes e tantos mais, em montras macabras e pestilentas.

Cabeças de animais vendidos como fetiches vudu no Mercado Central
Uns poucos vendedores aprestam-se a explicar-nos o propósito dos fetiches.
Perguntam se temos alguma necessidade em especial que queiramos ver resolvida.
Eram esoterismos de que preferíamos continuar a salvo. Lembramo-nos que ainda íamos visitar Ouidah e Abomey, cidades em que o vudu tem maior expressão.
Recusamos.
Em vez, conversamos com um pretenso sacerdote vudu.
Acabamos por o fotografar, de tronco nu, a segurar um falcão embalsamado.

Sacerdote vudu numa secção de fetiches do Mercado Central
Périplo Encalorado à Descoberta de Porto Novo
Ganhamos coragem e enfrentamos a fornaça vespertina atroz.
Dali, caminhamos em busca de outros lugares incontornáveis de Porto Novo.

Pintura mural na parede de uma loja de roupa
Nesse processo, apercebemo-nos que as autoridades tinham em prática um plano radical de modernização da cidade.
Obras afectavam atracções até há algum tempo imperdíveis, caso do Museu Etnográfico, encerrado em função do futuro Museu Internacional do Vudu.
Intervenções distintas condicionavam o Palácio Real Honme Afin Oba, antiga morada do rei (Oba) do Império do Benim epónimo.

Entrada do Palácio Real Museu Honmé de Porto Novo
O Reino de Porto Novo, um Produto da Divisão do Império de Daomé
Entre 1180 e 1897, esse império abrangia o actual território do Benim e boa parte da Nigéria, onde, às margens do rio homónimo, se situa a cidade histórica de Benim.
A chegada e imposição dos europeus, a começar pelos portugueses, em 1485, veio a ditar o colapso do império.
O palácio real de Porto Novo é, agora, um museu evocativo dessa era beninesa áurea em que, como hoje, a solidariedade entre os povos africanos sofria de máculas aniquiladoras.

Representação de Egoun Goun no Palácio Real da cidade
Na era de intrusão dos portugueses, o grande reino de Daomé tinha-se dividido em três reinos menores em permanente conflito: Alada, Daomé e Porto Novo.
De forma intermitente, rejeitavam as potências europeias ou a elas se aliavam.
O Conflito entre Reinos e a Viabilização da Escravatura às Mãos dos Europeus
Nessa rivalidade e inconstância, forneceram dezenas de milhões de escravos capturados a reinos e tribos rivais, aos portugueses, franceses, ingleses e outros.
O Palácio Real exibe um canhão que se diz ter sido trocado com os portugueses por 15 escravos.
Sucessivos reis da região, Hude, Messe e seguintes, enriqueceram a vender pessoas do mesmo sangue, separadas por meras desavenças entre os soberanos.

Boneco anima um espaço do palácio real que exibe uma lista dos reis de Porto Novo
Desde o fim do século XV que os portugueses consolidavam a sua presença no Golfo da Guiné.
Desde 1482 que já detinham, entre outras fortificações, o castelo de São Jorge de Mina, no actual Gana.
Viram o acesso aos escravos barrado pelo rei de Daomé que tinha declarado que todo o comércio esclavagista deveria passar pela cidade de Ouidah, a Ajudá em que os portugueses só mais tarde, a partir do século XVIII, se conseguiriam impor, com base no seu Forte de São João Baptista de Ajudá, uma fortificação de que mantiveram soberania durante toda a vigência colonial francesa.
E até à independência do Benim de 1960.
Até então, a solução que encontraram para contornarem o bloqueio do rei de Daomé foi erguerem uma fortaleza em Hogbonou, conseguirem o apoio do rei local e, a partir do reino rival, quebrarem o monopólio de Daomé.
Terá sido Eucaristo de Campos, um dos enviados pela Coroa Portuguesa, o responsável por rebaptizar Hogbonou de Porto Novo.

Edifício colonial francês e actual edilidade de Porto Novo
Em troca de riqueza, os monarcas de Hogbonou forneceram, em particular, aos portugueses, centenas de milhares de escravos enviados para trabalho forçado nas plantações de cana-de-açúcar, café e algodão do Brasil.
A Convivência do Cristianismo e do Islamismo com as velhas Crenças Vudu
No período de interacção dos reis de Porto Novo com os europeus, por uma questão de conveniência, os reis admitiram o Cristianismo como crença paralela ao animismo vudu.

Pintura que ilustra o deus vigia da noite Zangbeto a castigar um infractor
O museu do Palácio Real inclui salas dedicadas às práticas vudu.
Em redor da Catedral da Diocese Católica de Porto Novo, como em volta da Grande Mesquita e da nova mesquita sua vizinha, um pouco por toda a parte, abundam templos, santuários museus, estátuas, pinturas murais e afins que louvam e consagram as crenças vudu.

Criança no interior de um pórtico cabeça de cabra para um templo vudu
No bairro de Okòró destaca-se e retém-nos um templo de tom ocre, dito com forma de termiteira.
Foi erguido em honra de Oya: Iya Abi Mesan, a primeira divindade de Porto Novo. Iya Abi Mesan traduz-se como “Mãe de Nove”.
No complexo que lhe é dedicado, estátua após estátua, mural após mural, uma guia de nome Felicity explica-nos a sua lenda.

O templo “termiteira” de Ya Lya Abi Mesan
Consta que, derrotado, o primeiro rei de Ikoyi, na actual Nigéria, se viu obrigado a partir, com a companhia da esposa Olori, grávida. A sua diáspora levou-nos às margens de Porto Novo.
À chegada, Olori deu à luz nove crianças, um parto inaudito e considerado milagroso.
Na impraticabilidade de prosseguirem a sua demanda, o casal decidiu-se por se instalar em terras de Porto Novo.

Estátuas dos filhos da rainha Olori, ou Oya, primeira deusa de Porto Novo
Baptizaram-nas de Abesan Onikoyi, como homenagem à Ikoyi que deixaram para trás.
Sobretudo os Yoruba geraram várias derivações e representações alegóricas desta estória.

Abertura para uma casa num dos murais do complexo Ya Lya Abi Mesan
O simbolismo de nove serpentes para cada filho.
E de uma leoa, representação da bravura e majestade maternal da rainha.
A Praça Vudu de Yeadomin
Avançamos até à praça Yeadomin, toda ela dedicada ao vudu, supervisionada por uma estátua algo naive de Toffa I.

Moradora passa junto à estátua do rei Toffa I
Maurice, o guia residente explica-nos sucessivos murais evocativos de aspectos particular da religião.
Mostra-nos o templo da serpente, símbolo supremo de poder divino, de fertilidade e da transformação.

Santuário da serpente, parte do complexo vudu da Praça Yeadomin
Mostra-nos ainda pequenas câmaras fechadas em que, através de orifícios, conseguimos perceber provas de rituais e oferendas.
Feitas, por exemplo, ao deus da guerra Ogun, na forma de alimentos empilhados, de óleo e vinho de palma, nozes de cola e outros.
Logo ali ao lado, ficava o palácio actual dos reis de Porto Novo. da praça-museu Yéadomin, afiança-nos que, por cinco mil francos, cada, poderíamos visitar o rei Toffa IX e até fotografá-lo.
E uma Visita Decepcionante ao rei Toffa XIX
Entramos no palácio. Esperamos um pouco na sala do trono.
Quando Toffa IX entra e se senta, prostramo-nos uma série de vezes a seus pés.

Rei Toffa XIX no seu trono de Porto Novo
O guia diz-nos que podemos abordar sua realeza. Entre as várias questões, por o termos concluído de um quadro exposto, perguntamos em que contexto tinha visitado Nova Orleães, outra cidade de vudu, e como tinha corrido a viagem.
Toffa IX faz questão de nos exibir a sua pretensa superioridade, que o estávamos apenas e só a incomodar. Mal o percebemos, abreviamos a visita.
Pedimos ao guia para viabilizar as fotografias que nos tinha prometido. O guia consegue a permissão do rei. Tiramos-lhe algumas fotos que considerávamos importantes para a reportagem.
Fotos tiradas, Toffa IX diz ao guia que as tínhamos que pagar a sério. Relembramos o guia do que nos tinha prometido. Este, recorda o rei do preço habitual. Toffa IX atira que aquelas imagens valiam imenso, na Europa, que tínhamos que pagar muito mais.
Recusamos. Ficamos frente a frente, em silêncio, quase cinco minutos. Maurice farta-se, diz algo ao rei. Este, ainda mais farto, deixa-nos ir. Retém o guia por alguns minutos.
Maurice opta por fazer segredo de como resolvera o problema.
Já saturados dos esquemas benineses para subtracção de dinheiro yovo, deixamos ficar assim.

Aposento do rei do rei Toffa XIX que espreita através da entrada
Sem que o esperássemos, em jeito de despedida, Toffa IX, tinha dado provas da falta de escrúpulos e da ganância com que boa parte dos monarcas do Golfo da Guiné validou, durante séculos, a escravização dos seus povos às mãos dos europeus.