É Domingo de manhã. McArthur Cornibert, o motorista designado, falha em disfarçar o quanto aquela inesperada jorna o deprimia. Partimos do bairro La Clery e das alturas de Castries. Atravessamos a capital actual de Santa Lúcia e vencemos a ladeira que a remata.
Daí, rumo ao litoral-sul que tínhamos programado explorar, a estrada asfaltada passa por uma sucessão de vales e encostas orientados do centro da ilha para o litoral caribenho. Uma hora e meia desta montanha-russa luxuriante depois, atingimos o cimo do ziguezagueado que conduz à zona de Palmiste.
Mac detém o carro junto a um miradouro e, mesmo no seu tom monocórdico de tímido e irremediável aborrecimento, faz por nos incitar: “Espreitem ali. É um dos melhores panoramas dos Pitons que vão encontrar.” Resgatamos as mochilas fotográficas.
O Primeiro Avistamento
Esquivamo-nos aos vendedores de recordações omnipresentes na rota turística da ilha. Instantes depois, o varandim prenda-nos com a primeira das revelações arrebatadoras de Santa Lúcia. Por diante, a floresta tropical predominante cedia a um casario multicolor que ocupava uma talhada do vale abaixo.
Delimitavam-no o contorno de uma enseada ampla e uma encosta densamente arborizada de que os moradores haviam reclamado apenas a orla. Só por si, o panorama já teria tudo para nos deslumbrar.
Como se não bastasse o que até aqui descrevemos, do lado de lá do vale, dois enormes rochedos afiados insinuavam-se sobre a crista acima do povoado.
Os colonos gauleses habituaram-se a chamá-los simplesmente de Pitons, como fizeram a vários outros picos do seu Império Ultramarino. Uma vez que a povoação se situava nas imediações de um vulcão fumegante, apelidaram-na de Soufrière. Também este termo está longe de ser único nas Caraíbas.
Randy, um guia espalhafatoso e sensacionalista de um tour a que nos juntámos uns dias depois, fez questão de pôr os pontos nos “is”: “Os senhores por certo não o saberão mas eu informo-vos: graças aos franceses, só dois dos dezassete vulcões das Caraíbas é que não se chamam Soufrière. Verifiquem se quiserem!”
Les Pitons: o Monumento Geológico de Santa Lucia
Desde os confins coloniais de Santa Lúcia que Soufrière e os seus Pitons são indissociáveis. Por motivos programáticos, começámos por dedicar atenção ao duo de cumes, simbólicos da exuberância natural de Santa Lúcia ao ponto de darem o nome e a imagem de marca à cerveja nacional “Piton”.
No primeiro dia, limitámo-nos a atravessar a cidade apontados ao Trilho Natural Tet Paul, um percurso delineado no cimo da encosta de que despontam os Pitons: o Gros Piton (770 m) e o irmão Petit Piton (743m), ligados pela crista por que caminhávamos, de seu nome Piton Mitan.
Os mirantes privilegiados de Tet Paul revelavam-nos, em direcções agora opostas, os colossos de rocha no sentido da luz boa e em todo o seu esplendor, manchados pela vegetação que a eles se agarra.
O verde combinava na perfeição com o esmeralda-turquesa circundante do Mar das Caraíbas, ali dotado de uma fauna e flora tão preservada e rica que a UNESCO declarou toda a Reserva Ecológica Património da Humanidade.
Na última das varandas panorâmicas, a beleza semi-afundada do Petit Piton forçou-nos a interromper a caminhada. Sentamo-nos num banco de madeira e dedicamos-lhe uma merecida contemplação.
Nesse momento, pensávamos estar sós. O zunir de um drone em aproximação gera em nós dúvida. Activa o modo de defesa de um falcão que, ao sentir o seu território invadido, ataca o aparelho voador à bicada.
Nuvens maiores, mais escuras que os novelos que até aí pairavam furtam o brilho aos cumes. Ao constatarmos a extensão da nebulosidade, decidimo-nos pela retirada.
O Passado Ora Francófono Ora Anglofono de Santa Lucia
Voltamos a cruzar Soufrière, a caminho do vulcão que inspirou o nome da cidade, o único vulcão drive in à face da Terra, assim o promovem as autoridades turísticas de Saint Lucia apostadas em destacar o acesso facilitado às vertentes lamacentas, fumegantes, sulfurosas e inusitadas que, a partir do século XVI, surpreenderam e deliciaram os sucessivos visitantes europeus.
No período anterior às Descobertas, Santa Lúcia era habitada pelos aruaques. Pouco antes do advento da colonização europeia das Índias Ocidentais, estes viram-se dominados e expulsos pelos bem mais agressivos Caribes que, por sua vez, infernizaram a vida aos pioneiros do Velho Mundo.
Estima-se que Cristovão Colombo tenha avistado a ilha durante a sua quarta e derradeira expedição, quando se fez ao Mar das Caraíbas pelo norte da actual Barbados e passou para ocidente das Pequenas Antilhas precisamente a sul da ilha que nos acolhia. Colombo ignorou-a. Acabou por desembarcar em Martinica, a ilha que se seguia.
Sabe-se que náufragos e – a partir de 1550 – piratas franceses liderados pelo temido Jambe de Bois (François Leclerc) foram os primeiros habitantes europeus fixos de Saint Lucia, originalmente baptizada como Sante Alousie.
Por essa altura, qualquer tentativa de colonização estável era repelida pelos irascíveis Caribes. Chegado o ano de 1664, o governador britânico da vizinha Saint Kitts tentou submeter os nativos com uma força de mais de mil homens. Volvidos dois anos, destes, sobravam 89. Os restantes sucumbiram às doenças e aos ataques dos nativos.
Dois outros anos passaram. A Companhia Francesa das Índias Ocidentais resolveu-se apoderar-se da ilha. Abordou-a com muitos mais homens e recursos até que o objectivo foi cumprido.
Saint Lucia tornou-se uma dependência de Martinica. Não tardou a suscitar a inveja dos Britânicos que, tal como os franceses, se mostravam ansiosos por ampliar o cultivo proveitoso da cana-de-açúcar.
Durante os séculos XVIII e XIX, consoante as marés históricas de cada nação, Saint Lucia alternou dos franceses para os britânicos e vice-versa. Nesse período, sobretudo os colonos franceses, estabeleceram uma série de grandes propriedades agrícolas trabalhadas por escravos trazidos de África.
Em 1774, as autoridades gaulesas retalharam a ilha em sete redutos administrativos. Soufrière, um deles, desenvolveu-se segundo os padrões francófonos de então, com uma disposição rectangular das ruas e bairros, organizados em função da igreja principal (dos poucos edifícios de pedra) que tinha na praça em redor os lares dos colonos mais abastados e influentes, ainda assim, erguidos em madeira.
Desde então, em termos visuais, o que mudou em Soufrière foi a gradual expansão da povoação que chegou a capital da ilha e às orlas da baía que a acolheu.
O Reduto Afrancesado de Soufrière
No regresso de Tet Paul, paramos em mais um ponto elevado de observação. Desse outro mirante, apreciamos de uma perspectiva oposta à do primeiro dia, o casario prolífico de Soufrière, disseminado para lá de uma secção frondosa de coqueiros, na secção central do vale e da enseada.
Mesmo se os cruzeiros que sulcam as Caraíbas a transbordar de veraneantes atracam na capital actual de Saint Lucia, Castries, são os Pitons e Soufrière que os passageiros informados desejam.
Em Soufrière, em simultâneo, os moradores anseiam pelos magotes consumistas e excitados que lhes enchem os bolsos de dólares. Vendem-lhes artesanato e bugigangas Made in China. Demasiadas vezes, demasiado pertinazes, impingem serviços de guias para que não estão preparados.
Mais a norte na praia de Anse le Couchin, certos nativos já referenciados aguardam pelos snorkelers saídos dos tours de catamarãs em caiaques e conduzem os desavisados às zonas da praia com melhores recifes. Antes de estes voltarem para bordo das embarcações, apresentam-lhes a conta.
Um animador do catamarã em que percorremos o litoral de Rodney Bay a Soufrière garantiu-nos que já viu passageiros idosos forçados a pagarem 50 ou até 100 dólares.
Farta de os aturar sempre que vai à antiga capital, Maria, a nossa anfitriã holandesa (casada com um martiniquenho) de Castries descreve estes nativos oportunistas sem cerimónias: “umas pestes é o que eles são!”.
Quando os cruzeiros faltam, Soufrière vive a vida que, sem eles, teria. É numa dessas relativas pazes que a nos dedicamos à grande cidade do sul.
Ao detectarem as nossas máquinas fotográficas, um ou dois “empresários” já demasiados formatados para a caça aos gringos, não resistem a oferecer-nos os seus préstimos. Como que a emularem o bilinguismo fascinante da ilha, um fá-lo em francês. O outro em inglês.
Ainda hoje, Soufrière e o sul de Saint Lucia se expressam num crioulo francófono cerrado. Isto, apesar de Saint Lucia ter sido colónia britânica desde o término das Guerras Napoleónicas até à emancipação do Reino Unido, em 1967, e de integrar a Commonwealth.
Escusado será dizer que, mal se viram donos da ilha, uma das primeiras medidas dos britânicos foi mudarem a capital da francófona Soufrière para Castries que se anglizaria sem retorno.
Um Fim de Tarde Piscatório
Deixamos a praça central e a Igreja da Assunção entregues aos transeuntes aliviados pelo fim da tarde de trabalho e bem-dispostos a condizer.
Ao descermos a Frederick Clarke St. em direcção ao porto, cruzamo-nos com os inevitáveis convivas rastafarianos da cidade, habituados a cirandar entre os bares e negócios desta artéria da povoação e a sua arejada marginal. Nesse encerrar dourado da tarde, uma tarefa comunal recruta dezenas de mãos e atrai almas curiosas ao limiar murado da enseada.
Muito devido aos cruzeiros serem da conta de Castries e Soufrière ter ficado apenas com embarcações tradicionais de pesca, pequenas lanchas, veleiros e afins, os peixes abundam no mar em frente à Maurice Mason St. e à marginal em geral.
Meros vinte e cinco metros ao largo, dois pescadores de barbatanas e máscaras de mergulho orientavam uma complexa manobra de pesca à rede. Instruíam um séquito de puxadores em terra a recolherem a enorme rede de modo a preservarem o cardume cercado.
De início, os trabalhos evoluíram segundo previsto. Dois ou três percalços foram suficientes para desencadear a fúria dos cérebros da operação e discussões multidirecionais que, naquele crioulo ondulado, nos soaram a música, a temas entoados entre o Dance hall e o Boyoun soca.
Por fim, a rede é recolhida. Com o horizonte quase a capturar o sol, pescadores e espectadores ficam entregues à intrincada distribuição do peixe.
Satisfeitos com o que levávamos de Soufrière, decidimos partilhar a derradeira atenção com os Pitons.
A Deliciosa Visão do Petit Piton Crepuscular
Metemo-nos no carro. Atravessamos a povoação rumo ao limiar da sua baía. Logo, avançamos até ao areal e ao recanto em que a areia negra cede à floresta tropical dependurada na encosta. Um grupo de jovens mulheres determinadas a apurar a forma submete-se a exercícios extenuantes.
A poucos metros, sob o abrigo também ele vegetal de uma mangueira frondosa, três rapazes tratam de salvar a mente das agruras do dia, entregues aos seus weed fingers e àquele cenário tropical único com que boa parte do mundo só sonha.
Detemo-nos nas imediações, rendidos ao aroma da erva intensificado pela humidade caribenha. Apreciamos como o ocaso e o lusco-fusco maquilhavam o menor dos Pitons.
Do nada, aparecem quatro amigos adolescentes, um deles com um pitbull pela trela. Caminham até ao pontão em T que se destacava do areal e inauguram uma sessão de mergulhos acrobáticos de que nem a mascote se safa.
Não tarda, o negrume da noite une-se ao do areal. Regressamos a Castries. Os Pitons ficam entre as estrelas das Caraíbas.