Dar entrada num hotel chamado Nylon, ficava bastante aquém da recompensa que merecíamos pela viagem de nove horas desde Nyaung Shwe, Lago Inle.
Foi o que tivemos.
Sentíamo-nos de tal maneira moídos de todo esse tempo aos solavancos, apertados no banco de trás do carro que a sequência dos duches quentes, o jantar e o sono bem mais longo souberam a cetim.
Dormirmos demais tem sempre o seu preço.
Por volta das 8h, acordamos sem nada estudado, sem fazermos ideia de por onde começarmos a desvendar a cidade.
Como era de esperar, lá abundavam os pagodes. Ao constatarmos a sua venerabilidade e importância decidimo-nos pelo de Mahamuni. Em boa hora.
Metemo-nos num táxi que não é um taxi qualquer.
Pelo caminho, contratamos, To-Ku, o condutor, para todo o dia.

O taxista To-Ku e o seu pictoresco taxi amarelo
O pagode cativa-nos por um tempo sem fim. O taxista resolve ir à nossa procura.
“Ah, já percebi. Desculpem! É que me aconteceu várias vezes fazerem a viagem, entrarem no templo e, depois desaparecerem sem pagar.”
Mandalay e o Templo Sagrado de Mahamuni
Encontramos em Mahamuni e, em redor, toda uma complexidade religiosa e comercial decorrente da vida da cidade.
O céu mantém-se limpo. O dourado das estupas intrincadas resplandece contra o azulão imaculado.
Monges e crentes cruzam o pátio, para cá e para lá, para logo se sumirem nas arcadas grenás, brancas e douradas abaixo das estupas.

Pagode do templo de Mahamuni
Seguimos-lhes os passos. Lá dentro, há uma outra azáfama edificante.
Vários trabalhadores partilham andaimes e cooperam na restauração da folha-de-ouro que reveste o interior das arcadas.

Momento sob as arcadas garridas do Templo de Mahamuni
Duas jovens funcionárias partilham um almoço antecipado. Passam por nós mais monges e noviços, nos mesmos hábitos cor-de-vinho que condizem com os ladrilhos na base do átrio.
Que lhes revelam as cabeças rapadas, as faces, braços, um ombro e os pés descalços.
Um corredor ainda dourado e grená revela-nos uma aglomeração de fiéis sentados no chão e em prece. Diante deles, está um grande buda, sentado e dourado. O seu dourado é, aliás, crescente.
Em Honra de um Buda Sábio e Crescente
Cada budista que visita o templo tem o dever de o fazer munido de folha de ouro e de a acrescentar à estátua de Mahamuni, o Grande Sábio, considerada uma das representações de Buda, das criadas em sua vida.
Destas, diz-se que duas estariam na Índia, duas no Paraíso.

Buda de ouro do Templo de Mahamuni
Estima-se que a quinta, a de Mahamuni, terá sido criada no século II a.C., cerca de oito séculos após a vida de Siddartha Gautama.
Com as adições de folha-de-ouro, há muito que Mahamuni ganha volume, sobretudo as suas pernas cruzadas, a secção da representação mais acessível aos peregrinos.
Por ali, nem todo o discernimento e profecias estão entregues a Buda.
Numa arcada do lado de fora do templo, encontramos estabelecimentos geminados e replicados de astrólogos e quiromantes.

Astrólogo do Templo de Mahamuni
Confrontados com uma falta comunal de pacientes, os seus agentes tagarelam, lado a lado, sentados em cadeiras de plástico.
Regressemos a Buda e ao que é de Buda. To-ku, o taxista, assume-se guia.
Tantos outros Budas, Dourados e Não Só
Ali em volta, revela-nos uma série de oficinas criadoras de figuras de Buda, todas elaboradas por artesãos especializados.

Artesão finaliza uma estátua polida de Buda.
Encontramo-las áureas, à imagem da representação sagrada de Mahamuni.
Admiramos artífices esculpirem-nas em pedra branca, e jovens mulheres munidas de panos molhados, a limparem o pó das estatuetas, entre dezenas de exemplares terminados.
Como sempre acontece, nestes casos, um dono do negócio, ou capataz, refastelado num cadeirão, supervisiona o empenho dos empregados.
Por fim, resolvemos passar do reduto religioso ao político. Pedimos a To-ku para nos levar ao Palácio Real.
O guia devolve-nos ao âmbito budista: “lá mesmo ao lado há o templo de Shwenandaw, todo em madeira. É muito bonito. Deviam começar por aí.”
Assim que chegamos e o vemos pela frente, alegramo-nos por termos aceitado a sugestão.

Miúdas com máscaras protectoras solar, no palácio de Shwenandaw
O Grande Templo de Teka de Shwenandaw
Todo feito de teca, trabalhado e rendilhado até mais não, com vários níveis, torres e uma série de narrativas de mitos budistas talhados nas paredes e no tecto, o edifício revela-se um incrível tesouro da arquitectura tradicional birmanesa em que quase nos custa a acreditar.
Não é, todavia, apenas o edifício intrincado que nos seduz.
Envolve-o uma floresta de mangueiras e outras árvores que lhe conferem uma atmosfera ainda mais orgânica. Quando o circundamos, à descoberta, damos com os aposentos dos monges noviços lá acolhidos.
Quatro deles vêm ao nosso encontro. A interacção que se segue é limitada por pouco ou nada falarem além do seu birmanês.
Acabamos por os fotografar, ajustados sobre a dianteira de um velho jipe verde, tão antigo que nos atrevíamos a apostar que o teriam deixado na Birmânia os seus ex-colonos britânicos.

Jovens monges budistas sobre um jipe de um mosteiro de Mandalay
Apesar do visual orgânico e escurecido pela oxidação, o templo de Shwenandaw é bem mais recente que muitos outros, sobretudo em redor de Mandalay e das cidades reais que a antecederam.
Thibaw e Mindon. A Dinastia Min Fundadora de Mandalay
Mandou-o construir o rei Thibaw Min, o derradeiro monarca pré-colonial (e, em geral) da Birmânia. Thibaw era dado a crendices e afins.
O propósito fulcral do templo terá sido eliminar o espírito do seu pai, Mindon Min. Thibaw ordenou, assim, o deslocamento dos aposentos do progenitor, pouco antes de este falecer, em Outubro de 1878.
Thibaw habituou-se a usar o novo templo como um refúgio de meditação. Decorridos sete anos, o exército britânico invadiu Mandalay. Obrigou Thibaw a abdicar desse templo e do trono. E a exilar-se em Ratnagiri, na Índia Britânica.
Apesar da sua intrincada sumptuosidade, Shwenandaw não passou de uma obra menor.
Instantes depois, damos entrada no Palácio Real da cidade, a razão de ser sumptuosa, real e religiosa de Mandalay.

Panorâmica do Palácio Real
Após a sua ascensão ao trono, o rei Mindon decidiu fundar a sua própria capital monárquica.
Com os fundos da coroa drenados por nova derrota na segunda guerra Anglo-Birmanesa, Mindon decidiu transferir o palácio real de Amarapura para o sopé da colina de Mandalay, em boa parte, sobre o dorso de elefantes.
A escolha do lugar teve que ver com a sua fé budista.
Os birmaneses acreditavam que Buda já tinha estado no cimo da colina.
De acordo, Mindon decretou que o palácio lá devia ser erguido, diz-se que também como forma de celebrar os 2400 anos de Budismo no Mundo.
Compõem-no uma catadupa de telhados, pináculos e coruchéus de que se projecta, acima da sala do Trono Leão, tal qual foguetão dourado, um telhado pyatthat com sete níveis aguçados.
Outras torres secundárias, servem e embelezam o complexo.
Partilhamos o cimo da do relógio e a sua vista desafogada com dois monges budistas em evasão.

A torre relógio do Palácio Real de Mandalay
Protege-o Palácio Real, a toda a volta, muralhas amplas e um fosso com mais de 60 metros de largura.
Estas defesas pouco fizeram contra o poder dos britânicos que não desistiam de conquistar a Birmânia.
Durante a Terceira guerra Anglo-Birmanesa, num ápice, os invasores conquistaram, pilharam o palácio e levaram boa parte dos seus itens valiosos para Londres.
Como vimos atrás, foi já Thibaw, o rei sucessor, quem foi expulso do palácio.
À Conquista da Colina Suprema de Mandalay
Também o abandonamos, determinados a seguirmos os passos de Buda e a conquistarmos a Colina de Mandalay.
A elevação mantém-se de tal maneira sagrada que, à image de todos os visitantes, nos obrigam a subi-la descalços.
À partida, não viria daí mal maior. Só que os trilhos e escadarias são íngremes e, tal como os pátios dos templos no topo, de cimento ou mosaico.
Durante todo o dia, estes materiais aquecem sob o sol escaldante. Com as mochilas pesadas às costas, a peregrinação depressa se torna uma tortura.

Cenário fotográfico na base da Mandalay Hill
Tentamos abstrair-nos. Distrair-nos com as curiosidades que o lugar revelava.
Uma mãe e filho a posarem num posto de fotografia decorado com corações, acima de um sortido de flores.
Uma grande estátua de Buda, dourada, claro está, mas que exibe o grande sábio magro e de pé, e que traja uma túnica que lhe confere um visual efeminado.

Buda noutra forma, no cimo da Mandalay Hill
Estávamos naquela descoberta de Mandalay já nem sabíamos há quantas horas.
Quando damos a volta ao edifício ladrilhado que abrigava a estátua, deslumbra-nos o panorama imenso da planície urbanizada, com a linha distante do rio Irrawaddy a reflectir o rosado do sol poente.
Mandalay, a Nova Capital que Sobreviveu à 2ªGuerra Mundial
Boa parte da cidade que envolvia a colina e que lhe havia adaptado o nome, foi arrasada durante o pior dos conflitos, a 2ª Guerra Mundial. Primeiro, pelos bombardeamentos e incursões dos japoneses que ocuparam a cidade de 1942 a 1945.
Em 1945, pelos Aliados, prestes a derrotar o Império Nipónico.
Neste vaivém bélico, cerca de três quartos de Mandalay foram arrasados, incluindo quase todo o Palácio Real, que os japoneses haviam transformado num depósito militar.
A Mandalay que explorávamos havia dias e que admirávamos por diante era uma versão reconstruída, aprimorada depois de a Birmânia ter garantido a independência da Grã-Bretanha, em 1948.

Vista do cimo da Mandalay Hill
Ficamos a acompanhar o crepúsculo. Tínhamos o plano de regressarmos ao sopé ainda antes da penumbra.
Num ápice, a dor de pés agravada pela descida faz-nos cair na real.