A cabina ascende a boa velocidade.
Conquista a encosta de San Agustin, uma das várias que cercam a cidade, quase sem excepção, preenchidas por um casario abarracado.
Quando passamos pelo seu posto, Guillermo, um dos funcionários do Metrocable de Caracas com que nos cruzamos, recebe a visita da jovem mulher e da bebé de ambos.
Perguntamos-lhe que tal é a zona ali em volta, em termos de segurança. A resposta vai de encontro ao que já antes nos tinham aconselhado. “bom… passeiem um pouco.
Só não se afastem das estruturas do teleférico, de onde há câmaras de vigilância. Não se pode confiar muito neste bairro!”. Seguimos o conselho.
Ali por perto, vistas panorâmicas de um ou dois pontos destacados submetem Caracas a uma impressionante nudez.

Prédios altos do centro cercados por uma das dezenas de favelas de Caracas.
A favela estende-se em distintas direcções, em vagas de precariedade e disfuncionalidade urbana, intercaladas com outras, de vegetação tropical inconformada.
A Caracas Afavelada que Envolve o Âmago da Cidade Secular
Mais distantes, na planura fluvial que antecede a Cordillera de la Costa, despontam prédios altos, quase arranha-céus.
Dali mesmo, nesses dois planos víamos confrontarem-se as duas Caracas há muito inconciliáveis.
A da abundância e proficuidade da era capitalista venezuelana de 1950 a 1980, quando as exportações do imenso petróleo da nação, a preços elevados, geraram receitas inéditas.

Favela do bairro de San Agustin, vista do Metrocable de Caracas
Mais próxima, feita de tijolos e telhado de chapa, a dos venezuelanos e imigrantes por ela atraídos à capital e que, em virtude de inépcia governamental, nunca dela usufruíram.
Durante essas três décadas, um pouco ainda nos anos sequentes, os prédios surgiram, como cogumelos, a rivalizarem com as cristas luxuriantes em redor.
Nesse tempo, corrupção endémica, má gestão da flutuação da cotação do petróleo e uma inflação descontrolada originaram uma crise bancária e financeira, um caos agravado que culminou no Caracazo sanguinário de 1989.
Hugo Chávez e a Emergência Inexorável do Chavismo
Seguiram-se tentativas de golpes de estado, também o de um tal tenente-coronel Hugo Chávez.
Decorridos dez anos de frustração e comoção social, por fim, Chávez conquistou o poder, via eleições.

Manifestantes transportam uma bandeira da Venezuela
Impôs uma ideologia anti-imperialista, anti-capitalista e, sobretudo, anti-Estados Unidos.
Assentou o, não tarda apelidado de Chavismo, em princípios de autodeterminação política legados por Simón Bolívar, o militar e estadista que impôs à Espanha colonial a independência venezuelana, a da Colômbia em que viria a falecer, Peru, Equador e Bolívia. Suscitou ainda a de outras nações sul-americanas emergentes.
Entre incontáveis medidas de compensação e nivelação social, Chávez mandou erguer, entre 2007 e 2010, o sistema de teleférico que explorávamos, inspirado num já existente em Medellin,
Colômbia, onde as favelas e restantes transtornos urbanos são comparáveis aos de Caracas.
Chávez e o Metrocable Social de Caracas
Com um custo de mais de 100 milhões de dólares, monumental, o teleférico foi adjudicado à firma brasileira Odebrecht, famosa por ter implementado uma rede dinâmica de subornos de governantes que lhe granjeou um sem número de obras em, pelo menos, doze países latino-americanos e de África.
Refugiados naquelas alturas mais seguras de San Agustin, apreciamos a realidade algo surreal de Caracas.
Adiante e abaixo, em jeito de biombo de betão, várias fachadas de prédios alinhadas barravam a vista para a planura e a secção mais abastada da cidade.

Os arranha-céus financiados pelo abundante petróleo da Venezuela
De onde estávamos, na direcção da base desses prédios, fluíam sucessivas cabinas, vermelhas, à imagem da Revolução Bolivariana e do Chavismo que as propulsionou.
O sistema de teleférico mantinha-se preparado para transportar pelo menos 1200 passageiros por hora, em cada sentido, para cima e para baixo dos morros favelados.
Ora, as dezenas de cabinas que o víamos servir tinham inscritos os nomes de províncias venezuelanas.
Ou, outras, substantivos e termos pomposos supostamente concordantes com os ideais impregnados por Chávez e louvados pelos seus seguidores, incluindo o presidente incumbente Nicolás Maduro.
Identificámos “Ética Social”, “Lealtad”, “Moral”, “Sinceridad” e “Amor”.

Cabinas do sistema de Metrocable de Caracas
Isolacionismo e Insegurança: Caracas sempre na Liderança da Venezuela
Contados quase trinta anos de Chavismo, pseudo-socialismo Bolivariano e consequente ostracismo decretado pelos Estados Unidos e maior parte das nações ditas “ocidentais”, os problemas de Caracas só se agravaram.
Vemos um jogo de basebol decorrer num campo de terra batida conquistado à encosta.

Partida de beisebol, como vista de um alto do Metrocable de Caracas
Sentimos vontade de até lá caminharmos. Depressa contida pela noção bem clara do risco que correríamos se o fizéssemos.
Em San Agustin, o perigo não se fica só pelas alturas.
Vários vídeos mantidos online, mostram como, sempre que o tráfico congestiona a autopista Francisco Fajardo no sopé da vertente, os hampas (leia-se bandidos), descem o morro armados e caminham entre os carros imobilizados.

Uma das vias de acesso ao centro de Caracas de uma cabina do Metrocable
De olho nos passageiros, assim que detectam um, distraído, a usar telefone, tablet ou outro dispositivo, apontam-lhe uma arma e forçam-nos a entregá-los.
É um mero exemplo. A insegurança de Caracas disseminou-se, como uma praga, pelos seus morros e favelas. Nem sequer o centro alargado e aplanado da capital venezuelana está a salvo.
É uma das razões porque lá se destaca “El Helicoide”, um colossal centro penitenciário, de betão, estatal, usado como prisão tanto de prisioneiros comuns (e são mesmo muitos, em Caracas), como políticos.

O edifício penitenciário “El Helicoide”
Uma Capital Bolivariana, com Quase Meio Milénio
Como qualquer cidade, Caracas oculta, mesmo assim, uma história secular deslumbrante.
E sinais de vida e de cultura que, não fossem as suas duradouras atribulações políticas e sociais, poderiam satisfazer os moradores e atrair muitos mais visitantes, como o fez até 2005, por aí.
Fundada, em 1567, por conquistadores espanhóis, enquanto Santiago de León de Caracas, o cerne histórico da cidade obedece a uma típica grelha hispânica colonial.
Sem surpresa, dada a reverência venezuelana ao seu Pai Fundador, essa grelha difunde-se a partir de uma praça Bolívar, um quadrado refrescado por grandes árvores em torno de uma estátua de bronze escuro de Simon Bolívar sobre um cavalo empinado.

Estátua de Simón Bolívar no centro da Plaza Bolívar
A leste, ergue-se a Santa Igreja Catedral Metropolitana de Santa Ana.
Oposto, encontramos um dos teatros da cidade, também chamado Bolívar.

Vultos diante da Catedral Metropolitana de Sant’Ana
Por ali, não tarda, actores e figurantes levam a cabo uma reencenação histórica.
Estimamos que dos tempos revolucionários da Venezuela, com distintas personagens, de distintos campos sociais.
Alguns mestiços, uns poucos indígenas, alinhados com a Simón Bolívar.
E com a catedral e a casa em que nasceu Bolívar (agora Museu Bolivariano), em 1783, nas costas.

Representação histórica em torno da Plaza Bolivar
Assim mesmo, trajada a rigor de acordo com a época, a trupe marcha com paragens pré-determinadas para discursos do líder e representação.
Uns poucos vendedores de rua, de gelados, de granizados e afins ajudam a refrescar a multidão de espectadores que por ali passam e que seguem o teatro de rua.

Vendedora de um mercado num momento divertido
Derreados de caminharmos desde bem cedo, detemo-nos num dos cafés-restaurante conceituados das imediações. Pedimos cachapas com sumos naturais de fruta.
Nunca nos atreveríamos a visitar a Venezuela sem saborearmos estas espécies de panquecas tostadas, de textura fibrosa e sabor agridoce a milho e queijo.
Repostas as energias, retomamos a descoberta.
Simón Bolivar e o Bolivarianismo, uma Obsessão dos Líderes Venezuelanos
Cruzamo-nos com inúmeros murais garridos que louvam as cores da nação e, em jeito de obsessão com o seu início glorioso, Simón Bolívar.

Vultos em frente a um mural próximo da Plaza Bolívar que exibe uma citação de Simón Bolívar
Uma das fachadas de um prédio administrativo exibe um relevo com a face e uma das muitas tiradas grandiosas do independentista:
“Se se opõe a Natureza, lutaremos contra ela e faremos com que nos obedeça.”
O Congresso da República, a Assembleia Nacional e o Palácio Federal Legislativo, os edifícios em que os governantes decidem os destinos da Venezuela distam uns poucos passos.

Vista do edifício da Asamblea Municipal
Têm ápice numa cúpula dourada imensa de que se projecta uma bandeira venezuelana que o vento faz ondular.
Agentes da GNB, Guarda Nacional Bolivariana, em uniformes verdes elegantes vigiam os portões imensos de ferro fundido, entre sebes de palmeiras imperiais portentosas a condizer.

Mural exibe Hugo Chávez manchado por tinta negra
Nicolás Maduro e a Oposição. Uma Batalha Perdida pela Legitimidade Política
Tem sido este o ponto fulcral do conflito político que vitima a nação.
Entre a oposição que contesta sucessivamente a legitimidade dos resultados de eleições que, desde 2013, têm reconduzido Nicolás Maduro, sucessor de Hugo Chávez, como presidente da Venezuela.

Bandeira venezuelana no centro de Caracas
Ainda agora, Junho de 2025, no poder, malgrado as acusações da comunidade internacional, incluindo as do Comité dos Direitos do Homem das Nações Unidas, de que Maduro e o seu regime se perpetuam no poder mesmo tendo obtido menos votos que a oposição.
Em Julho de 2024, o regime incumbente repetiu essa fórmula. Assegurou a Maduro um terceiro termo presidencial que se estenderá até 2031.
Salvo alguma acção decisiva da oposição ou percalço do regime, até lá, pouco ou nada mudará na isolada e atormentada Venezuela.

Tráfico durante o anoitecer de Caracas
Como ir
A TAP: booking.flytap.com/ voa de Lisboa para Caracas às 2as e Sábados por a partir de 700€.