Na iminência da linha do Equador, pouco depois das três da tarde, o calor tinha diminuído o suficiente para sairmos à descoberta.
Subimos a bordo de uma das lanchas das Expedições Ducret. Junta-se-nos Nicolas Ducret, o mentor daquelas explorações aventureiras.
Ele próprio, um explorador inveterado, protagonista de longas ciclo-viagens. De 3.300 km pelas estepes e montanhas da Ásia Central, culminadas, em Kabul, com a sua participação numa partida de buzkachi, em que cavaleiros afegãos disputam uma cabra.
Seguiram-se travessias de oceanos, em veleiros. Nicolas viveu muito tempo em Moscovo. Durante mais de dez anos, descobriu a Rússia de lés a lés.
Uma oportunidade recente, levou-o a ambos os Congos. E, em convívio com gentes influentes de Brazzaville e Kinshasa, à conclusão de que um grande navio de um ministro congolês estava ancorado numa margem do rio Congo, sem uso e a deteriorar-se.
Nicolas acabou por recuperar esse navio, o “Princesse Ngalessa” e a colocá-lo no fulcro da sua empresa de expedições. Daí a uns dias, haveríamos de nele embarcar.
Naquela tarde, a prioridade estava em zarparmos da ilha fluvial. Descemos do barco. Reforçamos o empurrão necessário para o soltar da areia acumulada em redor da ilha no Sangha.
Uma vez libertos, o timoneiro ruma para montante do Sangha.
Por águas camaronesas, com a margem congolesa do rio a umas poucas centenas de metros.

Barco percorre o rio Sangha, próximo da margem camaronesa
Navegamos menos do que contávamos.
Quatro ou cinco minutos depois, encostamos à margem camaronesa, assim confirmada por uma bandeira verde-vermelha-amarela que a quase ausência de brisa mantinha pendente do topo do mastro.
O Parque Nacional Lobéké e o seu Ranger-Estrela Hyacinth
Três homens, dois em uniformes militares, vêm ao nosso encontro.
Dão-nos as boas-vindas ao Parque Nacional Lobéké. Um deles, mais corpulento, com presença de líder, assume o comando das operações.
Apresenta-se como Hyacinth. Responde-nos, em inglês, a umas poucas questões sobre a vida naquele recanto remoto e selvagem dos Camarões.

Pequeno lugarejo à beira do rio Sangha
Hyacinth gaba-se de ter conseguido dotar o quartel-general do parque de wi-fi. Entretanto, lembra-se da missão que ali nos levava. Entra nos aposentos.
Quando regressa, traz uma metralhadora FN Scar Herstal ao ombro. Belga como o foi, durante 52 anos, o Congo imenso e caótico a leste do que percorríamos.
Caminhada pela Selva Intrincada do Parque Nacional Lobéké
Vem acompanhado de Modest e de dois batedores.
A metralhadora de Hyacinth, em particular, era essencial no caso de darmos de caras com animais perigosos, com gorilas ou elefantes.

Ranger Hyacinth posa na margem camaronesa do rio Sangha, junto a um QG do PN Lobéké.
Hyacinth e Modest inauguram a caminhada. Modest abre-nos caminho à catanada, a cortar emaranhados de lianas e arbustos rasos.
De tal forma abundantes que, mesmo assim, neles nos embrulhamos e tropeçamos. Andamos por trilhos mal definidos.
Aqui e ali, esses trilhos abrem para clareiras que nos permitem sondar em volta. Modest indica-nos excrementos de elefantes, relativamente recentes. A equipa do PN Lobéké redobra o seu estado de alerta. Nunca chegamos a avistar elefantes. Nem gorilas, nem sitatungas ou outros animais maiores.
As Narrativas Esdrúxulas de Hyacinth e Modest
Na sua falta, como é usual entre guias da selva, Hyacinth e Modest procuram conferir à incursão um interesse vegetal.
Em pouco tempo, as suas explicações tornam a selva, além de selvagem, estranha e mórbida.

Guarda-florestal camaronês Hyacinth e um auxiliar, no PN Lobéké
Ali, em redor, segundo nos transmitiam, existiam árvores cujas folhas, cascas, seiva e distintos componentes ajudavam as mulheres a abortar e a engravidar, uma espécie particular, até de gémeos.
Outras, permitiam a quem bebesse da sua seiva vermelha, exorcizar assassínios cometidos.
Das árvores, os guias passam a referir espécies de formigas que percorriam os troncos e o solo, junto às raízes. As mulheres das tribos da região tinham percebido que as mordidas de determinadas formigas lhes aumentavam o tamanho dos seios.
“E por falar em seios…” acrescenta Hyacinth: “por estes lados, temos um outro hábito ancestral. Pode-vos parecer estranho, mas, quando andamos na floresta e alguma coisa entra num olho e o irrita, a solução mais fácil é pedir a uma mulher lactante que coloque um pouco de leite nessa vista.
Desinfecta e acalma-a num ápice!” As formigas mais agressivas serviam também para outros fins macabros. Ainda de acordo com Hyacinth e Modest, algumas mulheres aprenderam a, durante o sono, colocar os insectos, já irritados, sobre parceiros traidores.

Guarda-florestal Hyacinth explica algo sobre o PN Lobéké.
Rimo-nos a bom rir das sucessivas narrativas quando Modest nos pede silêncio.
Tinham avistado macacos mangabeis. Seguimos os guias em passo acelerado. Apesar dos esforços aturados de Modest e dos colegas, só conseguimos breves vislumbres, nas copas das árvores, demasiado distantes para nos permitirem fotografias condignas.
Por vontade de Hyacinth e dos companheiros, tínhamos caminhado pela noite dentro. Com a tarde planeada à sua maneira, Nicolas restabelece a ordem das coisas. Retornamos ao quartel-general do parque.
Tiramos fotos em grupo. Hyacinth assume-se relações públicas de Lobéké e elogia o autor deste texto.
Diz-lhe que o acha parecido com Francisco Ngannou, um campeão francês-camaronês de boxe e de artes marciais mistas (AMM). Inesperada, a observação quase nos deixa knock-out.
De Volta ao Sangha, rumo à Margem abaixo de um Primeiro Bai
Reembarcamos todos.
Ascendemos mais um pouco no Sangha, para lá de um meandro que, por um quilómetro e meio, apontava o rio a leste.
A essa hora, percorrido por sucessivas pirogas.

Grande piroga tranporta passageiros ao longo do rio Sangha
Hyacinth rejubila com a companhia de forasteiros que só recentemente começaram a aparecer naqueles confins africanos.
Responde a cada questão dos visitantes com brio e brilho de protagonista de série de acção.
Ainda mais quando as perguntas incidem na sua metralhadora e a pode explicar e exibir a contento.

Ocaso para trás do Rio Sangha e da selva congolesa
Enquanto o subimos, o sol mergulha. Tinge o céu de fogo, acima de uma linha de selva escura que as copas faziam ondular, à imagem do caudal do rio, avermelhado e agitado pela lancha.
Detemo-nos de frente para uma secção de margem que o recesso do Sangha mantinha elevada. Escondido detrás da floresta ribeirinha, havia um bai, o termo local para clareira, por norma, pantanosa ou lamacenta que quebrava a homogeneidade arbórea da selva.
Até há pouco, havia ainda uma torre de observação que permitia aos visitantes apreciar as movimentações dos animais, a salvo dos mais perigosos. A torre estava danificada.
O Plano B de Nicolas passava por aguardarmos, algo afastados, à espera dos elefantes que ali acedem ao rio.
Partilhamo-lo com outras espécies. Os elefantes nunca chegam a aparecer.

Abutre das palmeiras pousada num banco d’areia no rio Sangha
Regressamos ao acampamento com o crepúsculo a desfazer-se.

Casal à pesca no rio Sangha,
Juntamo-nos a outros elementos da expedição, num jantar-churrasco servido no areal da ilha, a pouca distância do Sangha, aquecido por uma fogueira e por uma intensa cavaqueira.
Dormimos embalados por uma sinfonia incrível, interpretada pelas criaturas nocturnas da selva.
Nova Incursão, para Montante do Sangha, Rumo a Bomassa
Na manhã seguinte, voltamos a navegar contracorrente. Nós e Anil, um americano de origem indiana, com quem partilhámos a expedição na íntegra. Guiados pelo jovem congolês Shadrack.
Vencemos dois meandros pronunciados do rio. A meio de um terceiro, na margem pertença à Rep. do Congo, damos com Bomassa, uma pequena cidade, ponto de entrada para o imenso Parque Nacional congolês Nouabalé-Ndoki.
Atracamos no seu extremo norte, justamente conhecido como Bon Coin.
Recebe-nos um grupo de guias e batedores do parque.
Seguimo-los selva adentro, por um trilho ziguezagueante, a espaços, interrompido por árvores derrubadas.

Indicação, à saída de Bon Coin, do Wali Bai, uma clareira-lago na selva da Rep. do Congo
A Espera Desesperante na Plataforma do Wali Bai
Decorrida quase uma hora, chegamos ao Wali Bai, clareira na selva preenchida por um lago de águas cristalinas e rasas. Ao invés do bai prévio, a sua torre de observação estava intacta.
Lá nos instalamos todos, nós e Anil, de câmaras e teleobjectivas em riste. Ansiávamos, pelo menos, a sorte do grupo da expedição que, na tarde anterior, lá tinha admirado um elefante juvenil.
E, no entanto, contadas três horas, os animais do Wali bai ficavam-se por uns poucos peixes, andorinhas e uma águia-pesqueira pouco interessada em pescar.

Andorinha apanha paus para aumentar um ninho sob a torre de observação do Wali Bai
Sobre o meio-dia, desistimos. No regresso a Bon Coin, ainda tentamos seguir um bando esquivo de macacos colobus.
Em vão.
Os íbis residentes alertavam-nos para a nossa presença, com piares estridentes, até algo sinistros.
Pelo caminho, os guias falam-nos da iminência dos gorilas do Nouabalé-Ndoki, de como poderiam redundar numa fonte de lucro turístico para as gentes de Bomassa, caso fossem habituados.
Como, ainda na expectativa dessa realidade, pouco passavam de uma ameaça.
De tal forma que os adultos de Bomassa proibiam os mais novos de se aventurarem pelos trilhos que partem da cidade.

Caminhante no trilho que liga Bon Coin ao Wali Bai
Encontro Inesperado e Assustador com um Gorila Não-Habituado
Estávamos rendidos à frustração de não termos visto nenhum elefante, nem sequer antílope ou javali da floresta e numa conversa animada, quando o batedor na dianteira nos manda a todos parar e calar.
Obedecemos, intrigados.
Alguns sussurros e cochichos depois, o batedor aponta-nos uma silhueta, quase imperceptível, encostada à base de uma árvore.
Percebemos, então que, não fosse a atenção do batedor, teríamos esbarrado num gorila não habituado a humanos.
Um poderoso macho de costas prateadas, que por certo se iraria por aparecermos sem aviso, por lhe interrompermos o petisco da fruta adocicada.

Gorila não habituado, a pouca distância de Bon Coin, Bomassa
Sem o desejarmos, já tínhamos ultrapassado uma distância de segurança. Quando esboçamos movimentos em busca de melhores ângulos de visão, os guias agarram-nos.
Ficamos, assim, naquele instante suspenso, nas expectativas difusas de que o gorila não nos atacasse, que se mexesse para onde havia luz.
Dono da sua vontade, o gorila farta-se de nos ver contemplá-lo.
Larga a fruta. Mete-se por uma zona de vegetação densa. Ainda o vislumbramos uma derradeira vez, antes de se sumir na vastidão intrincada do PN Nouabalé-Ndoki.
Num ápice, tínhamos passado de não encontrarmos nada a quase sermos despedaçados por um gorila selvagem. A expedição mal tinha começado.
Aquela África remota, com tanto de “Coração das Trevas”, reservava-nos muitas outras comoções.

Ocaso para trás do Rio Sangha e da selva congolesa
Como Ir:
Voe para Brazzaville com a Air France ou a Royal Air Maroc por a partir de 1600€.
Reserve o seu programa preferido das Expedições Ducret, de 8 a 15 noites, através do site expeditions-ducret.com, do telefone +33 1 84 80 72 21 e do email: [email protected]